Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Entre o Nós e o Nada, o detestável Eu

Numa biografia de Lévi-Strauss, os tristes trópicos e a maldição cósmica do Brasil

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

É de praxe que o biógrafo abra os trabalhos com um chega pra lá no gênero que pratica. A vida, diz ele, por si só não explica a obra que o biografado produziu. A biografia serve de aproximação à obra, e esta é mais importante que a vida.

O biógrafo dá então outro passo de praxe: atacar o biógrafo anterior de seu biografado. Ele não tinha distanciamento, não teve acesso a isso e aquilo, fez interpretações estapafúrdias, não viu o que aconteceu nos últimos anos, e aconteceu tanta coisa.

Emmanuelle Loyer dá os dois passos em "Lévi-Strauss" (Edições Sesc, 784 págs.), o que não deve desencorajar ninguém. Seu livro é excelente. É melhor que "Claude Lévi-Strauss: O Poeta no Laboratório", de Patrick Wilcken (Objetiva, 392 págs.).

O núcleo da biografia de Loyer vem de 261 caixas de papelão, que ela consultou na Biblioteca Nacional da França. Estão ali os arquivos do biografado. São cartas, fichas de leitura, agendas, manuscritos, fotos, anotações. Tudo inédito.

Os arquivos não guardavam segredos estrondosos. A imagem de homem frio e elusivo permanece. Mas o retrato que Loyer faz dele é denso, dá impressão que será difícil ir além dele. Frente a esse feito, seus ataques a Wilcken são mais descabidos.

Até porque ele fala português e morou no Rio; escreveu "Império à Deriva", sobre a fuga da corte lusa para cá; refez as expedições de Lévi-Strauss a Mato Grosso; entrevistou-o. Já Loyer erra três vezes o nome de Armando de Salles Oliveira, o interventor em São Paulo.

Em compensação, Loyer entrevistou Antonio Candido e conhece a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro e Fernanda Peixoto. Seu relato dos três anos de Lévi-Strauss no Brasil é extenso e complexo.

Percebe-se bem, por exemplo, o papel de Dina, com quem ele estava casado. "Só tenho um desejo: partir, triunfar, voltar", escreve ela às vésperas de se encontrar com os índios.

Pontos altos são também a amizade com Mário de Andrade e as intrigas na USP, da qual foi demitido por Júlio de Mesquita Filho, que o tinha por comunista. Só três décadas depois, quando Lévi-Strauss entrou no Collège de France, Mesquita se arrependeu.

As relações do antropólogo com o Brasil têm três vértices. Um está naquilo que ele disse quando era um nonagenário: "O Brasil é a experiência mais importante de minha vida". Usou o tempo presente e não falou de carreira intelectual: a "vida" como um todo.

Ele era professor de liceu nos anos 1930, militante da Seção Francesa da Internacional Socialista, leitor de Marx e Freud. Não sabia ao certo o que faria na vida e recebeu um convite a dar aulas nos trópicos. Chegou aqui com 27 anos e foi a campo. Encantou-se com a pintura corporal dos cadiuéus, com a música dos bororos, com a "melancolia sonhadora" dos nambiquaras. No seu caderno de viagem, anotou o que os índios tinham:

"Uma imensa gentileza, uma profunda despreocupação, uma ingênua e encantadora satisfação animal e, reunindo esses sentimentos variados, algo como a expressão mais comovente e verídica da ternura humana."

Tentou decifrar o sentido das sociedades ditas primitivas por meio de um método que veio a inventar. Ele combinava a linguística de Roman Jakobson, trabalhos de Marcel Mauss e Franz Boas, mitos ameríndios, intuições de Rousseau —o estruturalismo.

Na segunda ponta do triângulo está o diário de seu colega Alfred Métraux, que Lévi-Strauss encontrou em Santos pouco antes de voltar à França. Diz Métraux: "Lévi-Strauss detestou o Brasil. Acha que Vargas é um ditador sem princípios que apenas quer ficar no poder. Sua ditadura é essencialmente um estado policial. Não vê nenhuma esperança para a América Latina. Está quase inclinado a ver nesse fracasso uma espécie de maldição cósmica".

O terceiro ângulo fica para lá do Brasil selvagem e do civilizado, para além da ternura humana e da maldição cósmica. Está em "Tristes Trópicos", obra-prima do século 20 e de outros séculos. Nele está dito, a Pascal, que "o eu não é apenas detestável: não há lugar para ele entre um Nós e em Nada".

Lévi-Strauss explicou a Wilcken porque fez o livro: "Tinha um contrato para escrevê-lo e precisava do dinheiro". Loyer prefere explicações mais sofisticadas. Ambos devem estar certos. Não importa.

O vanguardista acabou seus dias na academia. O libertário elogiava Gobineau, o racista. O vanguardista repudiava o modernismo. O manipulador de mitos era manipulado por Chirac e Sarkozy. Morreu com cem anos. "Tristes Trópicos" continuará vivo depois de o Brasil acabar.

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