Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Paraísos artificiais

Depressivos, agricultores e viciados no novo romance de Michel Houellebecq

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O narrador de "Sérotonine" (Flammarion, 347 págs.) acha a nicotina uma droga perfeita. Pura e dura, ela é definida pela sua falta. Sem cigarro, o fumante sofre, mas tragar não lhe traz felicidade. A nicotina é como os romances de Michel Houellebecq, o autor do romance —um vício.

A primeira tragada é um alívio. Por exemplo: o protagonista diz que os programas de culinária tomaram o lugar dos eróticos na tevê porque o Ocidente, "nos termos do guignol austríaco", regrediu da fase genital para a oral. Ou então: ele tem horror à expressão "revisitar de maneira criativa".

É narcótico o personagem que confunde República em Marcha com França Insubmissa —os partidos de nomes cívico-bombásticos. Que baforada boa quando o narrador implica com o verbo "formatar". Ou com garçons que lhe desejam "boa degustação!". O escárnio enche os pulmões.

O chato é que "Sérotonine" não se pretende sátira manhosa. É literatura empombada e para multidões. Supersucesso das letras europeias, o romance saiu no mês passado na França —com uma tiragem de 320 mil exemplares— e, dias depois, na Alemanha, Itália e Espanha.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Em sendo assim, "Sérotonine" comporta inanidades do tipo "o mundo social era uma máquina de destruir o amor". O conteúdo da sentença é verdadeiro desde Villon. Mas desde Lamartine está entendido que, com um enunciado meloso assim, a afirmação amolece, fica kitsch.

A cada novo romance, os malefícios do vício em Houellebecq se escancaram. De modo crescente, a trama central tem como pano de fundo os últimos acontecimentos —o que pode ser tido por vontade de captar o real por meio do imediato. Seria um recurso estético positivo.

Mas como o escritor reproduz análises banais, prescinde da invenção para investigar o novo e se amolda a formas literárias estandardizadas, sua arte apenas intoxica. Não aprofunda a psique dos personagens. Os movimentos da sociedade. As tendências históricas. A renovação artística.

"Sérotonine" é uma overdose de escândalos. Apela ao voyeurismo sem fins masturbatórios; à descrição racista de uma japonesa transando com cães; à pedofilia, mas para normalizá-la; ao suspense bocó do bêbado que mira a testa de um menino —apertará o gatilho?

O afã em chocar é hipócrita porque primário. "Épater le bourgeois", a essa altura do desregramento, é um insulto não à inteligência, mas ao bom senso: o bicentenário do nascimento de Baudelaire está aí. Nem um filho de Bolsonaro ruborizaria. Ou melhor: só no palanque um filisteu se ofenderia.

O tema do romance anterior, "Submissão", foi a eleição de um presidente muçulmano —inspirado em Tariq Ramadan, que, acusado de assédio e estupro, vem de passar meses na prisão. Funcionou: fanáticos islâmicos atacaram o Charlie Hebdo no dia em que o livro saiu.

Agora, "Sérotonine" passeia pelo campo. Mostra que a União Europeia e a globalização destroem o trabalho na terra. Como se formou em agricultura, Houellebecq sabe do que está falando. Mas o panorama que dá do problema é sumário porque seu coração está alhures.

O coração está em Paris e o seu cérebro, entupido de antidepressivos, entrou em alfa. A serotonina do título, neurotransmissor que inibe emoções para diminuir a melancolia, é ingerida em doses elefantinas pelo protagonista, o técnico agrícola Florent-Claude Labrouste.

A tensão entre Paris e as províncias, tema clássico da literatura francesa, fica fora de foco porque Labrouste —alter ego indolente de Houellebecq— está obnubilado pelo nevoeiro da serotonina. Seria preciso criar uma linguagem literária que expusesse e mimetizasse a droga.

Drama nevrálgico da alienação psíquica, a depressão merecia que Houellebecq se empenhasse nisso. "Partículas Elementares" e "Plataforma" demonstraram sua garra em pensar, literariamente, os desvãos da França boêmio-burguesa.

Com "Sérotonine", porém, seu acomodamento parece total. O tempo e a fortuna o abrandaram? Sobrou só o vício?

 

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Cesare Battisti

C/O Casa Circondariale Salvatore Soro

Loc. Su Pedriaxiu Massama

09170 Oristano OR - Italia

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