Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

A língua, órgão sexualizado

Os debates na França sobre o machismo da escritura iluminista

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Por seis meses, a partir do fim de 2017, as classes conversadoras de França ficaram ouriçadas. Acadêmic.a.o.s, politic.a.o.s, professor.a.e.s e seu vasto séquito de internautas desocupados atiraram morfemas e fonemas uns nos outros. Debatiam a obrigatoriedade da “escritura inclusiva”.

As autoridades intervieram para pôr ordem na algaravia. A Academia, o antediluviano 
cenáculo que controla o vaivém da língua desde 1635, quando foi criada por um bigodudo que usava vestido roxo —o cardeal Richelieu—, denunciou os “celerados” que conspurcam o idioma de Racine.

Para a turma do fardão, a “aberração inclusiva” põe a fala iluminista em “perigo mortal” —nada menos. Como o artigo 2 da Constituição diz que “a língua da República é o francês”, o Alto Comitê da Igualdade, que zela pela paridade na sociedade, recorreu ao Estado.

Édouard Philippe, o primeiro-ministro, não se fez de rogado: interditou o uso da escritura inclusiva nos textos oficiais —as leis, decretos, comunicados do sem-número de instâncias do aparelho estatal gaulês. A discussão amainou, mas está evidente que prosseguirá.

Tanto é assim que foi publicado agora “Le Féminin et le Masculin dans la Langue” (ESF Sciences Humaines, 207 págs.), uma coletânea de ensaios de linguistas e historiadores coordenada por Danièle Manesse, professora emérita de ciências da linguagem da Sorbonne.

A vida cultural francesa tem isso de bom: o livro é de uma erudição acachapante, que exige atenção e empenho d.a.o.s leit.ora.re.s. Quem não sabe o que é “diacrítico” dança.

Os ensaios se circunscrevem a fatos e firulas da filologia, da gramática histórica e comparativa, da morfologia, da semântica e da sintaxe. Há opiniões, mas matizadas ao máximo, e todas decorrentes de dados aferíveis pela linguística, e não de achismos rombudos.

Por exemplo: a.o.s ensaístas mergulham de escafandro semiótico nos remotos abismos latinos do francês para aquilatar o que é hoje a questão dos gêneros: o masculino, o feminino e o neutro.
Fica-se sabendo que o termo latino “neutrum”, que abrandaria o predomínio do masculino na língua —reflexo do patriarcalismo e do machismo— significa “nem um nem outro”. O “neutro”, portanto, é o 
contrário do “comum” ao masculino e ao feminino. Ele não une, designa outra instância.

Como chave de ouro, o livro compara signos da língua de Molière a similares no inglês, no alemão, no coreano e no árabe. A língua aparece como um instrumento de comunicação entre seres humanos, que interagem entre si há milênios.

“Le Féminin et le Masculin dans la Langue” é uma festa. Complicada e rebuscada, mas ainda assim festa. Como dizem nas quebradas do Quai de Conti, sede da Academia: “chapeau!”.

Escritura inclusiva vem a ser a ferramenta linguística criada por setores do feminismo francês. Seu objetivo é acabar com a invisibilidade das mulheres na língua escrita. Ela utiliza pontos no meio das palavras —como nas que salpiquei nesta crônica: “acadêmic.a.o.s” quer dizer “as e os acadêmicos e acadêmicas”.

O equivalente no português seria o “x”. Em vez de escrever “boa parte dos deputados são pilantras”, se redigiria “boa parte dxs deputadxs são pilantras”, para assim abarcar o conjunto dos membros da Câmara, sem marginalizar as mulheres da pilantragem.

A reivindicação não é tola, porque a generalização, sobretudo de funções profissionais, se dá majoritariamente pelo gênero masculino. Relembrem-se, por exemplo, os ataques a Dilma quando disse que preferia ser chamada de “presidenta” —que não é escrita inclusiva porque o vocábulo é abonado pelos dicionários.

“Presidenta” soa esquisito porque Dilma foi a primeira a ocupar o cargo. É uma 
questão de uso, em suma. Mas vale a pena usar o termo para tornar visível o gênero da mandatária? Ou isso viola a eufonia do português por um capricho nominalista?

Sob o manto da língua, a clivagem na verdade opõe esquerda e direita. Os conservadores acham que não se deve mexer na língua justamente porque ela parece sufragar o machismo. Já os progressistas pensam que a maneira como se usa língua é útil para combater discriminações.

Ocorre que, como ensina Danièle Manesse, o universo das coisas e pessoas não é da mesma natureza que a língua. O gênero gramatical e o gênero biológico não são homólogos: uma mesa não é feminina nem um sofá masculino. Mudar a relação entre mulheres e homens é mais difícil que mudar a realidade das relações entre el.a.e.s.

Bruna Barros/Folhapress

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