Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Colocações

Houve um tempo em que púnhamos, botávamos e metíamos, mas ele passou

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No Brasil, adoramos colocar. Houve um tempo em que púnhamos com mais frequência, para não mencionar todas as ocasiões em que botávamos. Por razões que será preciso investigar melhor, hoje preferimos colocar. E como colocamos!

Lemos esta semana na Folha que uma cabeçada de Everton Ribeiro "colocou Cássio para trabalhar", que "a China colocou a culpa dos protestos (de 1989) nos contra-revolucionários" e que Jean Wyllys anunciou medidas contra "a mentira abjeta que colocou nossas vidas em risco".

São só três ocorrências, entre as incontáveis que nos cercam, em que o arrivista colocar rouba o posto de trabalho de colegas como pôr, botar, meter, pousar, depositar, atribuir, aplicar etc.

Seria absurdo dizer que aquelas frases estão erradas. Contudo, em sua política expansionista, colocar provoca um estrago vocabular equivalente ao do desmatamento de um belo naco da Amazônia.

 

Não há muito a fazer. É um fato linguístico banal uma notícia como "Homem coloca fogo na própria casa". Verdade que, a olhos mais cevados na tradição, o fogo, com sua imaterialidade feroz, é um parceiro desajeitado de colocar, verbo a princípio mais técnico.

Acontece que o uso detém a última palavra, as opções coletivas sempre acabam por vencer —cartilhas e ouvidos delicados que se adaptem, ora. A banda toca essa música há séculos. Mesmo assim, é saudável ficar atento a abusos.

Já foi pior. Nossa compulsão colocadora tornou epidêmico, nas últimas décadas do século 20, um vício nascido na linguagem universitária: aquele em que o verbo é (ou era) usado como sinônimo de dizer, sustentar, argumentar: "Entendo a sua colocação, mas gostaria de colocar que..."

Essa praga, se não passou, arrefeceu bastante. No entanto, quando hoje as galinhas optam por colocar ovos e a gente se dá conta de que, se fosse criado neste século, o bairro carioca de Botafogo se chamaria Colocafogo —nesse momento vale a pena parar e pensar.

Vindo do latim "colocare", isto é, "cum + locare", pôr em determinado local, colocar é uma palavra nascida no século 15, quando a língua portuguesa se sofisticava. Sinônimo de pôr, botar e meter, estas do século 13 e mais próximas das raízes orais do idioma, representava uma espécie de gentrificação linguística.

Pelo menos a princípio, era um termo mais fino, de maior precisão no onde e no como. O "chute colocado" da linguagem futebolística traduz bem essa ideia. Qual força, então, acabou por fazer de colocar esse irresistível genérico de massa?

A resposta que eu queria deixar como hipótese é: aquela ânsia mal-orientada de formalidade e apuro, quando não de pompa e pedantismo, que é uma marca da cultura brasileira.

Nossa inclinação coletiva pelo termo que parece mais erudito, menos popular, e que portanto imaginamos mais correto e bacana, tem prestado maus serviços à língua. O modismo do verbo possuir empregado indiscriminadamente no lugar de ter é o exemplo clássico.

Há anos temos lido e ouvido, no Brasil, que pessoas possuem resfriados, dúvidas, dores de cabeça, um picolé —como se tais coisas contingentes e fortuitas estivessem inscritas em seu corpo ou lavradas em escritura no cofre de sua casa.

É uma impropriedade vocabular e tanto, diante da qual o mais novidadeiro uso de colocar parece saído de uma página de Machado de Assis. Mas neste momento fica claro que o assunto é amplo demais para ser colocado por inteiro aqui. Continua na semana que vem.

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