Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu

O imponderável Betto

O frei voador lança uma lembrança da avó e uma cartilha marxista

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Frei Betto é estranho. Parece ter 50 anos e acabou de soprar um bolo com 75 velas. Publicou 65 livros de catequese, política, ficção, memória, diários, culinária e literatura infantil. Isso até ontem, porque lança uns dois por ano. É escritor em tempo integral? Impossível: viaja sem parar.

Ao embarcar para Brasília, você topa com ele em Congonhas, à espera de um voo para Curitiba. Desembarca na capital e Betto já está ali. Mas foi antes ao Paraná, passou pelo Amapá, teve cinco reuniões no Distrito Federal e aguarda o avião de volta para São Paulo. Terá o dom da ubiquidade?

Com paletó de veludo de lapelas largas, camisa de listras verticais azuis, jeans e bolsa a tiracolo —lá vai ele com seu modelito anos 1970 amparar os aflitos, orientar os perdidos, acudir os desvalidos, organizar a luta socialista. Tudo sem pressa e com as inefáveis reticências da mineirice.

Ilustração de Bruna Barros para Mario Sergio Conti de 14.set.2019.
Bruna Barros/Folhapress

Peraí que tem alguém na porta. Era o Betto: “Estou chegando de Cuba e parei para tomar um café”.

Brincadeirinha. Mas ele é o único brasileiro que toca a campainha da casa dos outros sem avisar antes. Tem 123 mil amigos e trata todos como únicos, incomuns, imprescindíveis.

Esse santo homem operou agora outro milagre. Publica simultaneamente dois livros que parecem ter sido escritos por pessoas não só diferentes como antagônicas. Um abstrai a sociedade, só vê o indivíduo, dispensa teorias e é alusivo; o outro é direto, ideológico, engajado.

“Minha Avó e seus Mistérios - Memórias Inspirativas” (Rocco; 134 págs.) conta como era Maria Zina, uma senhora miúda, encurvada, de voz pausada e suave que andava de bengala. Adolescente, o 
frade cujo nome de pia batismal é Carlos Alberto Libânio Christo morou com ela.

O retrato que faz dela enfatiza o sombreado da sua maneira de ser e pensar. A avó lhe diz, por exemplo: “Quer conhecer a filosofia de vida de alguém? Observe-lhe os sapatos”, e explica que “quem se cansa de andar encurta a vida; quem prossegue, afasta a morte para depois”.

O paradoxal é que a Maria Zina não anda, leva a vida encapsulada em si mesma. Professora viúva e aposentada, lê clássicos do século 19 e faz tricô “como se suas mãos pequenas e ágeis brincassem de esgrima com as longas agulhas”.

Ela se compara ao passageiro no ônibus que, “imóvel, observa a paisagem pela janela” e, sem um pingo de nostalgia, raciocina infatigavelmente. Maria Zina conclui sua parábola com uma pergunta: “Pra que servem os caminhos se não para conduzir a nós mesmos?”.

Como se vê, o livro tangencia a dicção melosa das pílulas de autoajuda tipo “sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere”. A ponto de, ao dizer que o marido morto virara vaga-lume e lhe piscava todas as noites, o neto se perguntar: “A velhice lhe embaralhava as ideias?”.

“Minha Avó” não é raso porque combina fantasias do próprio Betto com as que Maria Zina lhe falava. E também porque, em tempos torpes, de truculência tonitruante, o terno perfil de uma mulher que destila sabedoria imemorial é um bálsamo. Falar baixo é um valor cada vez mais escasso.

“O Marxismo Ainda É Útil?” (Cortez; 112 págs.) é uma atualização do manual que Betto escreveu no crepúsculo da ditadura, quando era obrigatória a disciplina de organização social e política brasileira, OSPB, criada pelo generalato para doutrinar os alunos do ensino médio.

Pois o frei fez um livrinho para a matéria, deu-lhe o título anódino de “OSPB – Introdução à Política Brasileira” —e, subversivo, expôs ideias na contramão da papagaiada reacionária do regime. Resultado: vendeu 800 mil exemplares até que a OSPB fosse cancelada, por Collor.

Ou seja, “O Marxismo Ainda É Útil?” é produto do velho-novo obscurantismo. Ao contrário da negativa peremptória do papa Bento 16, Betto responde “sim” à pergunta do título.

Seu argumento: reduzir o marxismo aos crimes de Stálin e às barbaridades da Revolução Cultural Chinesa é o mesmo que dizer que a Inquisição concentra os ensinamentos de Jesus.

Como escreve para adolescentes, o didático Betto diz que a ideologia é como os óculos na frente dos olhos —eles distorcem a realidade e quase não são percebidos por quem os usa.

É verdade. O próprio Betto enxerga Cuba com óculos que fazem com que a ilha vire um Éden. O país, escreve, é hoje o único que passou do modo de produção capitalista para o socialista. Nem Raúl Castro diz mais isso. Também não emprega no trecho as palavras liberdade e democracia. Marx ficaria escandalizado com a afirmação e a omissão.

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