Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A prosa escarlate com franjas douradas de Flaubert em 'Salammbô'

Lançamento de uma nova tradução, pela Carambaia, permite reavaliar a primeira impressão deixada pelo livro

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No tempo em que funambulários ornavam os clinábaros com arômatas nabateus, adolescentes que aprendiam francês tinham que decorar longos trechos de "Salammbô", o untuoso romance histórico que Flaubert publicou em 1862.

Era dose. A cada página, os leitores iniciantes tropeçavam em sicômoro, númida, sílfio, polemarco, benjoim, barrote, alfarroba, assa-fétida, lódão, euboico, sissítia, zainfe. Para não falar das divindades: Schebar, Kroûm, Micipsa, Schaul e, é óbvio, Taanach.

Havia quem curtisse. Casimiro Xavier de Mendonça, que virou crítico de arte, adorava o "toldo de púrpura com franjas de ouro". Estava certo: o romance é uma natureza morta com leões crucificados, tropel de elefantes e Salammbô, a sílfide sexy em vaivéns lúbricos com um fálico píton —que um colega engraçadinho travestia para "pinto".

 Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sérgio Conti de 17/10/2020
Bruna Barros

A decoreba gerava uma repulsa liminar à literatura, logo associada a uma logorreia louca. João Cândido Galvão, outra vítima de cântabros e cariates, escapou por pouco e se tornou crítico de teatro. Mas ao ouvir falar de "Salammbô" suava frio. De Flaubert, queria uma coisa só: distância.

O lançamento de uma nova tradução de "Salammbô" (Carambaia, 461 págs.) permite reavaliar a primeira impressão deixada pelo livro. Antes, porém, um porém um poucochinho pedantesco.

O primeiro parágrafo do romance, de uma única frase, é: "Foi em Mégara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar". Pois a tradutora Ivone Benedetti decepou as duas primeiríssimas palavras, "foi em". Lá se foram o verbo e a eufonia; lá ficou a localização rombuda de começo de um filme B: "Mégara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar".

"Salammbô" se passa nas Guerras Púnicas do século 3º a.C., que opuseram Roma e Cartago na disputa pelo comércio do Mediterrâneo. (Spoiler: Roma venceu; se perdesse, hoje admiraríamos civilizações africanas, acharíamos os europeus uns primitivos).

Como não tinha exército, Cartago arrebanhava mercenários de povos vizinhos. Ao fim da Primeira Guerra Púnica, ela deu um calote nos matadores de aluguel e eles se revoltaram. "Salammbô" flagra uma guerra obscura, a de mercenários contra cartagineses, no interior da guerra gloriosa.

O romance é vergado por descrições fastidiosas de bichos, construções, roupas, armas, detalhes e gestos de uma massa multiétnica. Ele inverte a relação entre contexto e figuras: enfatiza os cenários e deixa em segundo plano um punhado de tipinhos estereotipados.

Os estereótipos são os do orientalismo, disciplina surgida a partir da invasão do Egito por Napoleão, no fim do século 18. O Corso saqueou o que pôde de tesouros da Antiguidade e os levou para Paris. Dali o fascínio pelo Oriente se irradiou pela Europa.

Não era o deslumbramento por ouros e bronzes d'antanho: a riqueza oriental era presente, acende cobiças ocidentais até hoje. À ideologia orientalista se aplica a análise de um contemporâneo de Flaubert, Marx: quando uma classe (o campesinato, no caso) não se representa, ela é representada por outra (a burguesia alinhada a Napoleão 3º).

"Salammbô" é uma representação europeia do Oriente. Por isso a sua Cartago é exótica, perfumada, sanguinária, sensual, selvagem, extravagante. Numa palavra: bárbara. Ocorre que o seu autor era um escritor enorme, o que complica e melhora o romance.

Flaubert disse numa carta que fugiu para a Antiguidade e o Oriente em "Salammbô" por "nojo" da sociedade que o circundava —a que o perseguiu ao se ver retratada como tacanha e cruel em "Madame Bovary". Pesquisou em bibliotecas e foi estudar as ruínas de Cartago in loco. Contudo, não fugiu do aqui e do agora.

Tinha consciência de que escrevia a respeito da França de 1862. O passado e o presente, porém, não se encaixam no romance. A não ser que se tome Salammbô, a filha de Amílcar, líder de Cartago, por uma contrafação de Emma Bovary. (Outro spoiler: acaba mal, mas não à la Romeu e Julieta, a paixão entre ela e Mathôs, o líder dos mercenários).

Quando "Salammbô" saiu, o descompasso entre intenção e realização, entre o que passou e o que é, foi apontado por Sainte-Beuve e pelos Goncourt; e depois por Lukács e Edward Said. Eles concordam noutro ponto: os erros de um gênio são superiores aos eventuais acertos de um medíocre. A arte ilumina.

A arte joga luz nos escombros da memória. A tarde cai aqui e em Cartago. Saudade de Casimiro e João Cândido, amigos quatrocentões que morreram e gargalham ainda ao declamar "Salammbô".

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