Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Papa cita Vinicius e celebra arte do encontro em meio aos desencontros na vida

Em nova encíclica, Francisco faz referência a 'Samba da Bênção', pequeno diamante da música brasileira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há poucos escritos mais borocoxôs que as encíclicas. As cartas dos pontífices aos chefes católicos existem desde o início do cristianismo. A partir de meados do século 17, estabelecem as linhas gerais da Igreja a respeito de grandes problemas contemporâneos.

Elas são maçantes porque a burocracia vaticana é adiposa e letárgica. As encíclicas costuram dúzias de citações, sobretudo do Evangelho, e às reinterpretam à luz de ameaças à Santa Madre: modernidade, socialismo, secularização, materialismo, etc.

Aí o papa de turno alinhava conclusões que sintetizam o que a cúpula católica fala de maneira dispersa. As encíclicas, pois, não são contundentes nem pregam mudanças abruptas: homogeneízam. Entre as 295 lançadas nos últimos séculos, as bem logradas fixaram uma ou outra ideia.

É o caso da Rerum Novarum, de Leão 13 (os trabalhadores padecem); da Divini Redentoris, de Pio 11 (o comunismo é mau e perverso); da Mater e Magistra, de João 23 (a Igreja deve se atualizar); da Humanae Vitae, de Paulo 6º (o sexo legal é o para gerar filhos).

Ilustração do papa conversando com o poeta Vinícius de Moraes, acima frase de um de seus poemas "A vida é arte do encontro"
Bruna Barros

A leitura das encíclicas permite acompanhar a história da Terra a partir de um ponto de vista moral, elaborado pela Igreja mais antiga e com o maior rebanho —1,3 bilhão de ovelhas, 18% da população de um planeta abalado por convulsões.

Convulsões que, nas últimas décadas, puseram o próprio Vaticano em crise. Não se trata apenas dos inúmeros casos de pedofilia e corrupção de cardeais, bispos e padres. A Sé de Roma perdeu milhões de fiéis para religiões oriundas das prédicas do Profeta e do cisma de Lutero.

Nesse contexto, o papa Francisco lançou no domingo passado, na Basílica de Assis, Fratelli Tutti, Todos Irmãos, uma encíclica inspirada nos sermões de são Francisco. Devido à peste, assinou-a na pequena cripta e não na majestosa nave superior, onde estão os lindos afrescos de Giotto.

Com 287 parágrafos, e 288 citações extenuantes, a encíclica é uma ladainha que critica de tudo um pouco: o egoísmo, a desigualdade, os que hostilizam imigrantes, o ódio. Sobram até ataques a quem não desgruda da internet.

Nas redes, diz Francisco, "fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana".

Fratelli Tutti lamenta a ausência de um "projeto" de longo alcance, capaz de acabar com a miséria. Na sua falta, enaltece os "bairros populares" onde se "ajuda o vizinho". Nada diz sobre as forças da ordem que pisam no povo, ou os milicianos que o esfolam. Tampouco escreve a palavra "capitalismo".

Em vez disso, repete a cantilena da fraternidade, da paz e da tolerância: somos todos irmãos. Esses valores luminosos, porém, foram letra morta na era da Igreja triunfante. Antes e agora, irmãos fortes e proprietários exploram a multidão planetária de irmãos miseráveis e fracos.

Como os valores pregados pelo Nazareno configuram uma aspiração poética, o momento forte de Fratelli Tutti, aquele em que um choque sacode o leitor brasileiro, ocorre quando Francisco cita Vinicius de Moraes: "A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro na vida".

O verso consta do "Samba da Bênção", que Vinicius escreveu e Baden Powell musicou. Ele é um pequeno diamante da música nacional, um marco dos anos 1960, nos quais tantas esperanças vieram à tona.

A lírica de Vinicius resplandece na aridez da encíclica. Seu verso começa e termina com "vida", contrapõe "encontro" a "desencontro", flui manso para afirmar a beleza da harmonia entre as pessoas.

É com a suavidade que "Samba da Bênção" supera a mensagem que o papa tanto pena para pôr de pé. Canta as mulheres, exalta os "sambistas do Brasil branco, preto e mulato" e homenageia a sensibilidade popular. Com orgulho, Vinicius se diz "o branco mais preto do Brasil".

Tomada como crítica literária, Fratelli Tutti é um achado: a encíclica nos lembra que a arte de Vinicius tem raiz mística. Jovem, ele começou a ser poeta sob a influência do catolicismo carola de Octavio de Faria, o romancista enrustido que queria comê-lo.

A maturidade abriu sua poesia para o amor (casou nove vezes), para o engajamento (foi expulso do Itamaraty pela ditadura), para as festas da vida (bebia como um gambá).

Essa abertura lhe ditou as obras primas "Balada do Mangue", "O Operário em Construção", "Rosa de Hiroshima" e "Garota de Ipanema". É o poeta quem abençoa o papa, e não o contrário.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.