Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Não chore, meu amor, não chore, que amanhã não será outro dia

Na poesia de Cacaso, as sombras e as sobras de um Brasil sempre presente

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Lá pelo fim dos anos 1970, Antonio Carlos de Brito, que passou a usar Cacaso como nome de pena, teve uma iluminação. Disse que os jovens poetas marginais, ou de mimeógrafo, não eram autores individuais. Eles compunham juntos o "poemão" da sua geração, a da ditadura.

Na recém-lançada "Poesia Completa" de Cacaso (ed. Companhia das Letras), Heloísa Buarque de Hollanda diz que a linha estilística que amarraria o tal poemão seria o "registro direto e breve, em tom coloquial". A ideia merecia ser levada adiante.

Um aluno em busca de tema para o TCC, um aprendiz de poesia ou um crítico literário comporiam um poemaço com os versinhos da turma. Como disse Roman Jakobson, "existe uma caprichosa correlação entre as biografias das gerações e a marcha da história".

A trajetória dos poetas marginais por certo importa, diz algo da história cultural. Chico Alvim deu alcance épico à sua poesia mínima. Roberto Schwarz dedicou-se mais a ensaios. Geraldo Carneiro virou acadêmico com fardão e tudo. Outros, vai saber onde andam.

Ilustração do Sol se pondo em meio a nuvens e edifícios
Bruna Barros/Folhapress

Mais que mapear a vida dos autores, porém, o poemão poderia contrapor as sombras e as sobras dos poetas da ditadura à vaga atual de abuso e trevas. A poesia libertária colada ao cotidiano, mas que falava de dentro da história, diz algo do e para o presente?

Afora servir de matéria prima para superpoema, a "Poesia Completa" se presta a outras abordagens. Além de toda a sua poesia publicada, traz versos inéditos e letras das canções que escreveu e foram musicadas por Edu Lobo, Tom Jobim, Francis Hime etc.

Os inéditos, tateantes e descosidos, não estão à altura dos publicados —tanto que Cacaso não se animou a lançá-los. Quanto às canções, sem saber ou se lembrar da sua melodia fica difícil comentá-las.

O maior mérito da publicação de todos os poemas, então, é propiciar a apreciação objetiva da sua poesia, uma crítica que escape ao que Flora Süssekind chamou de hagiografia, o culto biográfico dos santos.

Cacaso morreu aos 43 anos, de infarto. Virou quase um mártir, venerado no altar dos artistas de vida breve. Nele estão santos do cinema (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade), da música popular (Torquato Neto, Cazuza) e da literatura (Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski).

A crítica cultural fez com que a biografia dominasse sua obra. "São vidas impregnadas, a posteriori, de intencionalidade, são destinos nos quais se enxerga, nos mínimos detalhes, a marca da excepcionalidade", disse Süssekind. Com isso, a canonização "se transforma em barreira analítica".

É possível, ainda, fazer uma coisa menor com os versos: inverter a ideia do poemão geracional e aplainá-lo numa prosinha exclusiva e íntima, numa conversa de tico-tico que diga respeito aos dias que correm. Para efeitos de clareza, ela é dividida em três tópicos.

Lá vai. Tomara que dê certo.

Amor. O meu amor e eu nascemos um para o outro e agora só falta quem nos apresente. Para evitar mal-entendidos digamos desde já que nos amamos. Desde que declarei meu amor nunca mais me olhou de frente. O amor que não dá certo sempre está por perto.

A minha ex-namorada usurpou o lugar onde floria, exuberante, a esposa atual de meu pai onipresente. Feliz de mim que frequento amiúde e quando posso a boceta dela. É porque entrei demais na sua intimidade que estou fora dela agora. Não chore, meu amor, não chore, que amanhã não será outro dia.

História. Sonhei com um general de ombros largos que rangia. Jamais mudar pela violência, mas manter pela violência: morte ou dependência. Descoberto pelo português, emancipado pelo inglês, educado pelo francês, sócio menor do americano, mas o modelo é japonês.

A Nova República nasceu de cesariana. Um marreco aproveita a audiência e se candidata a senador (falava de Sergio Moro?). No Brasil a medicina vai bem mas o doente ainda vai mal: não é o paciente que acumula capital (anteviu a pandemia?).

Tempo. Minha pátria é minha infância, por isso vivo no exílio. Cadê a Via Láctea que estava aqui? O gato bebeu. Cadê o queijo que estava aqui? O gato comeu. Gato filho da puta.

Remava rio acima com a leveza de quem descia a favor da correnteza. Querendo sair me tranco, tentando falar me calo. Meu poema me contempla horrorizado.

O presente já era. O futuro não tem futuro. O tempo amordaçado me espera. E assim voam verdes anos. Vida, que sei de ti? Talvez nada, talvez nem isso.

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