Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Para barrar o banho de sangue de Bolsonaro é preciso ação organizada

Francisco Weffort e José Arthur Giannotti viveram as contradições entre pensamento e ação e o pessoal e o político

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“Olha só”, disse Francisco Weffort ao mostrar as mãos lambuzadas de graxa. Estava afogueado quando chegou à União Fraterna, um centro operário na Lapa usado para manifestações políticas e culturais. Atrasara porque um pneu furou e teve que trocá-lo. Lavou as mãos às pressas.

Era um ato em solidariedade a Jacek Kuron e Antoni Macierewicz, do Comitê de Defesa dos Trabalhadores, o KOR polonês. Dissidentes, eles haviam sido presos pela ditadura stalinista. Mal entrado nos 40 anos, Weffort era o mais velho no auditório, o único de tweed.

Subiu ao palco e defendeu a luta pela liberdade onde quer que ela se desse. Disse que era crucial a auto-organização dos trabalhadores em sindicatos e partidos independentes. Para derrubar a ditadura e
agir no sentido do socialismo.

Era algo admirável. Por implicar risco pessoal e isolamento intelectual. Corria a segunda metade dos anos 1970, quando a ditadura torturava e matava. A polícia política vigiava os protestos in loco e com lupa.

O grosso da intelectualidade se guiava pelo PCB, que defendia a burocracia soviética com fake news, satanizando os dissidentes e quem os ajudasse. Ainda não se criara o sindicato Solidariedade nem o PT.

No plano interno, os capas pretas do partidão amavam notas de repúdio. Mobilização e independência, nem pensar: que os figurões liberais se acertassem com a milicada e tirassem da cartola uma transição branda do regime. Na esquerda, ser contra o capitalismo era raro.

Já Weffort pensava e agia por conta própria. Numa panfletagem na periferia, trocamos obas e olás com um grupo de crentes. Ele comentou que havia um lado positivo no crescimento evangélico. Como assim, o cientista social materialista achava que o ópio do povo tinha virtudes?

O povo de carne e osso, respondeu, expulso do campo pelo latifúndio, era atomizado nas metrópoles. A perda da comunidade, o alcoolismo e a violência patriarcal eram atenuados por pastores que davam bíblias, autoajuda e conforto aos desenraizados.

Ilustração de uma tartaruga carregando uma torre em cima de seu casco. Duas pessoas e um elefante pequeno caminham atrás da tartaruga, cada um carregando uma torre também.
Publicada nesta sexta-feira, 6 de agosto de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

O populismo cresceria ali, afirmou, mas completou: aumentariam lá, igualmente, a organização e a luta dos trabalhadores.

Weffort morreu dias depois de José Arthur Giannotti, também ele intelectual, mas de outra extração, filósofo.

Ambos viveram as contradições entre pensamento e ação, entre o pessoal e o político.

Giannotti agia por meio de aulas, livros e conversas socráticas. Mas revelou-se um administrador de mão cheia na direção do Cebrap. Inventou meios para mantê-lo de pé economicamente, enquanto incentivava o livre debate e atraía pesquisadores jovens. Era de uma generosidade ímpar.

Foi um pensador que desmontou Althusser antes que isso virasse moda. Em “Origens da Dialética do Trabalho” e “Trabalho e Reflexão”, criticou Marx a partir da fenomenologia e da epistemologia, ao
mesmo tempo em que perseverava na crítica ao capitalismo.

A partir de “Certa Herança Marxista”, porém, enredou-se num ecletismo difícil de acompanhar, e não só pelo estilo abstruso. Apoiando-se em Wittgenstein, sustentou que o capitalismo era um sistema como o da linguagem, o que é escabroso até como metáfora.

Giannotti explicou que a lógica era sua obsessão. Afeto perverso, a obsessão não tem nada a ver com lógica. Seu pensamento parecia descolado da realidade, girando a mil em torno de ideias fixas: a sua última foi Heidegger.

Assim como Weffort, afundou na geleia tucana, à qual tudo perdoava e justificava, intoxicando-se num ressentimento idiossincrático em relação ao PT, pelo qual ambos passaram. Para piorar, era dado a provocações rombudas, quando não irresponsáveis.

Como a que fez na eleição de Bolsonaro: “Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom” (Folha, 16 de outubro de 2018). “A grande sorte das eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar”, garantiu, numa previsão que errou na mosca.

Em Roma, na praça da Minerva, há uma linda estátua desenhada por Bernini: a de um elefantinho com um obelisco egípcio no casco, no topo do qual há uma cruz. Uma inscrição diz que, para sustentar a sabedoria sólida, há que se ter a mente robusta do mais forte dos animais.

O monumento faz lembrar Weffort e Giannotti, pois pode ser visto como alusão ao pensamento que, de tão pesado, inviabiliza a ação ágil quando o perigo é iminente.

Ou seja: hoje. Em sindicatos, igrejas, partidos, escritórios, assembleias e escolas, a ação organizada é o único meio de barrar o banho de sangue que Bolsonaro prepara.

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