Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Filme 'Ilusões Perdidas' escancara a praga das fake news ao longo do tempo

Longa tem atuação esplendorosa de Gérard Depardieu e traz grandes questões do século 19 para o 21

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Há várias razões para assistir a "Ilusões Perdidas", que pré-estreou e logo entrará em cartaz. Uma delas é ver Gérard Depardieu esplendoroso. Ele está roliço e estufado como um leitão. Seu nariz é um tubérculo. O cabelo está ralo. Parece que viveu na esbórnia cada um dos seus 72 anos.

Está também monstruoso fora das telas. Miliardário, deu um passinho além de Paulo Guedes e se naturalizou russo para sonegar impostos. Responde a um processo por abuso sexual. Cai de bêbado e vive trombando a moto. É cupincha de Putin. Não diz coisa com coisa. Está um trapo.

Depardieu faz um papel secundário no filme, o que é complicado para uma celebridade. Interpreta um editor venal, mas realista e sem sombra de cinismo. Prescinde de caras e bocas e rouba a cena, atraindo todos os olhares.

Não é só carisma. Ele tem a inteligência da humildade.

"Ilusões Perdidas" é adaptação do romance capital da "Comédia Humana", de Balzac. Em duas horas e meia, o diretor Xavier Giannoli conta as aventuras de Lucien, um rapazola provinciano que muda para Paris com a nobre intenção de viver para a arte e o amor.

Poeta e amante de uma aristocrata casada, Lucien busca uma nobreza que cabe na partícula "de". Por parte de pai, seu sobrenome é Chardon. Ele quer trocá-lo pelo da mãe, "de Rubempré", cujo "de" denota pedigree ilustre, ainda que depauperado. Só o rei pode autorizar a barganha.

O filme se passa na Restauração, que vai da queda de Napoleão, em 1814, até a grande revolta de 1830 —afora os Cem Dias, quando Bonaparte retomou o poder até ser banido. A velha monarquia é restaurada e adquire caráter burguês.

A nova nobreza não é de sangue (hereditária) nem de espada (obtida em guerras). É a de toga, aquela cujos títulos aristocráticos são outorgados pelo rei aos burgueses, que o sustentam e comandam o governo. A Restauração marca a derrota da Revolução de 1789.

É uma época reacionária e de progresso tecnológico, de especulação e fortunas feitas da noite para o dia, de compra de posições de mando com moeda sonante —ou por meio de campanhas deletérias agenciadas pela imprensa. É a época de ouro das fake news.

É nessa mixórdia que Lucien chafurda. É largado pela amante nobre (Cécile de France, que além de boa atriz é bonita de tirar o fôlego) e abandona as ambições artísticas. Primeiro para sobreviver em Paris e, em seguida, para subir na vida. As ilusões que perde são as do amor e da arte.

Foi Balzac quem criou a expressão "quarto poder", o que vem depois do Executivo, do Legislativo e do Judiciário: a imprensa. Para ele, Lucien chegou ao fundo lodoso do poço ao se tornar jornalista. Movida a fake news, a imprensa é sinônimo de fraude e corrupção em "Ilusões Perdidas".

Ilustração de uma pessoa com cabelos curtos, casaco, calça e sapatos pretos. Ela está ajoelhada com um dos joelhos no chão e a outra perna flexionada para frente, os cotovelos se apoiam no joelho flexionado e as mãos escondem seu rosto. O fundo é todo azul.
Publicada nesta sexta-feira, 10 de dezembro de 2021 - Bruna Barros

Segundo o historiador Robert Darnton, Procopius as criou no século 6° d.C. para enlamear o imperador Justiniano. Cem anos depois vieram as pasquinadas de Aretino, que vilipendiava todos, menos seus patrões, os Medici.

Na Restauração, explodiram os "canards", periódicos com pseudonotícias sensacionalistas, apregoados aos berros por garotos ("canards" significa patos). Eles foram produto do progresso técnico, da impressão veloz. Com fraudes e patuscadas, eram úteis a uma sociedade que comercializava tudo, até consciências.

Lucien, artista em botão, vira um mercador que vende opiniões, não importam quais. Ao criá-lo, Balzac falava de si mesmo, um jornalista que atiçava polêmicas, palpitava despudoradamente e navegava num mangue de "canards", de fake news. Com pseudônimo, elogiou um livro da sua lavra.

Até "Ilusões Perdidas" foi fruto da imprensa moderna. Publicado em folhetins, era espichado e encurtado conforme os ditames do mercado. Ao recolhê-lo na "Comédia Humana", contudo, o artista Balzac sobrepujou o Balzac jornalista; o romance venceu a sociedade guiada pelas mercadorias.

Lucien, não. O filme mostra que a imprensa formava um sistema cujo objetivo era negociar. Partícipe, o protagonista vai à lona porque foi manipulado pelo poder e pela oposição que, também ela, usufruía da mercantilização até a medula.

Com a técnica que barateou as fake news (vacinas provocam Aids; a facada em Juiz de Fora foi urdida pelo próprio Bolsonaro), "Ilusões Perdidas" traz questões do século 19 para o 21. A imprensa "canard" é inevitável? Num mundo onde tudo se compra, o jornalismo é exceção? Que ilusões persistem? Qual será o próximo filme de Depardieu?

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