Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Streaming é cinemateca em casa, mas sem a experiência do cinema

Com abundância de produções, grande arte cinematográfica corre o risco de virar entretenimento inócuo

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Papai Noel acertou na mosca. Trouxe de presente uma assinatura do Criterion Channel. Esqueça Netflix, Amazon, Mubi. Que outro serviço de streaming tem 43 filmes de Hitchcock, inclusive os que fez antes de mudar para Hollywood?

E mais: as famosas entrevistas do diretor para François Truffaut e Dick Cavett. Morreram há pouco Lina Wertmüller e Jean-Paul Belmondo. Da diretora italiana a plataforma oferece sete filmes. Do ator francês, 13. Só da nouvelle vague são 45 filmes.

A atriz Ingrid Bergman e o diretor Alfred Hitchcock  no set de "Interlúdio"
A atriz Ingrid Bergman e o diretor Alfred Hitchcock no set de filmagens do filme 'Interlúdio', de 1946 - Divulgação

Bertolucci, Kurosawa, Visconti, Peckinpah? Eles têm no Criterion filmes que não se vê há séculos. De Bergman há a íntegra de "Cenas de um Casamento" para a TV sueca, e não a execrável adaptação americana.

O forte são os filmes americanos e europeus, mas há muitos asiáticos e até africanos. Do Brasil há dois: "Pixote", de Hector Babenco, e "Limite", de Mario Peixoto.

A abundância de filmes bons leva a um pensamento nada original: o aumento da quantidade implica uma mudança na qualidade. A mudança começa na maneira de assistir aos filmes e termina, talvez, na percepção da passagem do tempo.

Ver filmes artísticos não era corriqueiro. Dependia dos que chegavam ao grande circuito, no qual o comercialismo e a censura eram obstáculos. Ou de retrospectivas em cineclubes. Assistia-se a "Cidadão Kane" e "Outubro", por exemplo, e eles não eram reprisados por anos.

Os filmes viviam na memória e eram assimilados lentamente. Isso mudou com os vídeos em VHS e depois em DVD. Passou a ser possível ver bons filmes na televisão, alugados ou comprados. A experiência de vê-los coletivamente, no escuro e na tela grande, se perdeu em grande parte.

A tendência chegou ao paroxismo com o streaming. Aperta-se um botão do controle remoto e centenas de obras —instigantes, lindas, inteligentes— estão à disposição do freguês. Esse bônus, contudo, é obtido em imagens e sons de televisão, sempre piores que as do cinema.

É como ter uma cinemateca em casa. Mas o afã em ver tudo torna problemática a apreensão individual dos filmes, bem como a sua compreensão aprofundada. Eles são mais consumidos que curtidos. A grande arte cinematográfica corre o risco de virar entretenimento inócuo.

Como o acesso é imediato, e permite rever cenas, a concentração lasseia. Assiste-se a tantos filmes, dia após dia, atabalhoadamente, na catacumba doméstica, que passa para segundo plano a memória que se tem deles. Qual foi mesmo a obra-prima vista anteontem?

A memória é a matéria-prima de Chris Marker, o pensador, ensaísta e cineasta francês que morreu em 2012. Há cinco filmes dele no Criterion: "Domingo em Pequim", "Junkopia", "Carta da Sibéria", "Sem Sol" e "La Jetée", que está em todas as listas dos melhores filmes da história do cinema.

Em "Carta da Sibéria", ele repete uma cena, mas a narração que faz dela altera o seu sentido radicalmente. Numa, a Sibéria é um lugar miserável, cujo povo é explorado por burocratas soviéticos cheios de privilégios. Noutra, com as mesmíssimas imagens, a Sibéria tem um povo feliz e que progride graças ao regime stalinista.

Você que acha que está na moda quando diz que os fatos dependem das narrativas que se fazem deles: fique sabendo que o filme é de 1957. Marker não referenda essa vulgaridade. A sequência na qual repete as cenas é alegre, visa o humor, não tem nada de verdade sacrossanta.

O que "Carta da Sibéria" diz é que a última palavra acerca do passado está no presente. E naquilo que se quer do futuro. Nesse sentido, o filme tem uma frase que ajuda a pensar a apreensão da arte ao longo da história, inclusive a assimilação de filmes por meio do streaming: "A cultura é o que resta depois que todo mundo foi para casa".

Ilustração representando uma pessoa inclinada para trás tendo ao fundo um avião que viaja em sua direção e uma criança que se pendura em cordas suspensas
Ilustração publicada em 7 de janeiro de 2022 - Bruna Barros

É em casa, depois de a história acontecer, que a cultura se deposita e é individualmente percebida. A profissão de fé no personalismo tem um grão de estranheza porque Marker filmou a história ao vivo: torturas no Brasil; a guerra de libertação na Guiné; a revolução em Cuba; lutas ecológicas no Japão; a crise da esquerda no mundo inteiro.

Certa vez lhe recriminaram o individualismo, suas narrações personalíssimas a respeito de fatos históricos objetivos. Marker disse: "Tudo que tenho a oferecer sou eu mesmo".

É o que ocorre em "La Jetée", um foto-romance feito de instantes que se passa no passado (quando o protagonista teve um trauma), no presente (no qual é explorado) e no futuro (onde pode se dar a sua liberação).

Mas aí, nos três tempos, o protagonista morre —vira cultura.

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