Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Cinema

'Judas e o Messias Negro' e 'Quo Vadis, Aida?' retratam o colapso da política

Filmes, que foram destaque no Oscar 2021, mostram degeneração da convivência civil, que dá lugar à força homicida

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São filmes diversos no tempo e no espaço, na estética e no escopo. “Judas e o Messias Negro” encena o choque entre militantes negros e o poder branco nos Estados Unidos dos anos 1960. “Quo Vadis, Aida?” mostra uma chacina na Bósnia. Mas algo os aproxima: o colapso da política.

Os filmes falam da degeneração da convivência civil, que dá lugar à força homicida. Embora situados do passado, ambos se nutrem de crises do presente —o racismo e a resposta do ativismo negro nos
Estados Unidos; o destino da minoria muçulmana e dos refugiados na Europa cristã.

O traidor do título de “Judas e o Messias Negro” é um ladrão pé de chinelo, a quem a polícia paga para se infiltrar no Partido dos Panteras Negras e incriminar seus integrantes. “Messias negro” é como J. Edgar Hoover, o sátrapa do FBI, se refere ao carismático líder do partido, Fred Hampton.

Ilustração de duas pessoas negras vestidas de preto (uma delas com cabelo curto preto, óculos escuros redondos, batom vermelho e blusa de manga longa; a outra com boina preta, óculos escuros e blusa com gola V) segurando duas bandeiras brancas com panteras negras desenhadas nelas. O fundo é todo verde.
Publicada neste sábado, 22 de maio de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

Não fica no título, atravessando o filme todo, a equivalência entre um dedo-duro nojento, William O’Neal (Lakeith Stanfield), e um político da fibra de Hampton (Daniel Kaluuya). Histórica e politicamente, seria nivelar Lula a um Palocci, a um João Santana desses.

No plano dramático, a equiparação faz sentido porque “Judas e o Messias Negro” às vezes tende mais para thriller que para filme político. Ele só pode ser totalmente entendido no contexto crispado dos
anos 1960, na dinâmica da ação radical contra o racismo.

Quem dá prumo ao pêndulo entre aventura e política é Daniel Kaluuya, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante. Eletrizante, o seu Hampton está à altura da figura real, um orador que, na garra dos seus 20 anos, faiscava —vale a pena ver na internet os discursos dele.

O filme não diz, mas Hampton se dizia marxista-leninista. Contra a política identitária e racial, ele fez com que os panteras negras se aliassem a negros, a brancos pobres e até a gangues —a Coalizão Arco-íris— contra a agressão policial, que seria um momento do combate ao capitalismo.

Hampton promoveu a auto-organização de comunidades carentes, pondo de pé restaurantes populares e comitês de apoio às vítimas da violência. Some-se a essa prática a postura pantera negra: cabelos black power, casacos de couro, boinas, fuzis à vista, enfrentamento da polícia, defesa da revolução socialista internacional.

Homem negro com óculos estende braço enquanto discursa
Fred Hampton, morto pela polícia, demonstrou desde cedo vocação para o ativismo - David Fenton/Getty Images

Apesar do seu pendor bolso-paranoico, Hoover (Martin Sheen, formidável) talvez não estivesse errado ao dizer que o messias negro poderia deflagrar e liderar uma rebelião popular. A política do poder não quis conversa com Hampton. Graças a seu infiltrado, o FBI o matou a sangue frio. Não foi esquecido: é um herói do Black Lives Matter.

O debate sobre a organização do movimento negro é antigo. Como os trabalhadores descendem de escravos, e o racismo é estrutural, Trótski cogitou a criação de um partido negro nos Estados Unidos. Quando foi morto, Malcolm X discutia com os trotskistas do Partido dos Trabalhadores Socialistas a organização de tal partido.

Se o sopro épico da organização dos desvalidos percorre “Messias Negro”, não há brisa que alivie a aflição dos injustiçados em “Quo Vadis, Aida?”. O filme se passa em 1995, na guerra da Bósnia, durante o massacre de 8.373 muçulmanos por milícias sérvias em Srebrenica.

Não há ações coletivas, e sim a tragédia de indivíduos. Caçada, uma multidão se refugia num quartel da ONU, buscando a proteção dos encarregados de mediar o conflito. Aida (Jasna Djuricic) é uma tradutora que serve de intérprete entre os perseguidos e o general Ratko Mladic (Boris Isakovic), criminoso de guerra sérvio.

Aida percebe que os fascistas preparam a mortandade. Corre para cá e para lá, implora, esconde o marido e os filhos, constata que aqueles que os matarão eram seus vizinhos há poucos dias. Clama, reclama.

Mas a política dos poderosos deste mundo, bem como o ímpeto fascista, são avassaladores, e o morticínio se consuma em cenas que lembram “Os Desastres da Guerra”, de Goya. Jasna Djuricic corporifica nos gestos e no rosto aquilo que as palavras da política já não podem dizer: a injustiça que esmigalha.

O título de “Aida” traz o filme para o presente. Num evangelho apócrifo, são Pedro escapa de ser crucificado em Roma. Encontra com Jesus e lhe pergunta: quo vadis, aonde vais? Cristo responde que vai a Roma —para ser crucificado de novo.

Aida volta a Srebrenica. Para procurar os cadáveres da sua família, ver que sua casa foi ocupada por quem os matou. Volta à cidade para ser crucificada de novo porque o passado não passou.

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