Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Costa-Gavras fracassa, mas consegue mostrar que a economia é uma ditadura

'Jogo do Poder', longa do cineasta, não tenta entender o que ocorreu e termina com um coro mudo e conformado

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Costa-Gavras inventou um cinema político mais próximo da dramaturgia hollywoodiana que da vanguarda soviética. As modestas invenções formais eram compensadas pela eficácia da sua denúncia de ditaduras, às quais contrapunha a bravura apolínea de Yves-Montand.

“Z”, o primeiro de seus filmes desse gênero, tinha montagem sincopada, atuações trepidantes e trilha sonora que grifava os gestos heroicos.

Didático, ele contava como uma milícia lúmpen assassinara um liberal a mando de um generaleco brucutu tipo brega neto, digo, nato.

Desenho mostra pés pisando em pessoas
Publicada em 20 de agosto de 2021 - Bruna Barros
O espectador saía do cinema reconfortado na sua fé na democracia, único meio de fazer frente à força beócia. Costa-Gavras era convincente porque atacava tanto gorilas gregos (“Z”), uruguaios (“Estado de Sítio”) e chilenos (“Missing”) quanto ratazanas stalinistas (“A Confissão”).

Seus filmes têm as marcas da época. “Z” foi feito na Argélia em 1968, seis anos depois de o país ter vencido a guerra de independência contra a França. “Estado de Sítio” foi filmado no Chile, no interregno democrático do governo Allende. O inconformismo estava em alta.

A rebeldia estética, também. Datam daqueles anos a épica incendiária de Gillo Pontecorvo em “A Batalha de Argel”, a poesia lírica de Bernardo Bertolucci em “O Conformista”, a elegia barroca de Glauber Rocha em “Terra em Transe”.

Já Costa-Gavras adaptou a política à gramática dos thrillers, dando-lhes uma entonação documental. Revistos hoje, seus filmes ainda emocionam e ensinam. Sobretudo no Brasil, onde Esparta ocupou a Acrópole.

Em outras paragens, contudo, o mundo mudou muito, impondo novos problemas e abordagens ao cinema político.

Foi o que ocorreu na Grécia, na Europa —e no último filme de Costa-Gavras, “Jogo do Poder”.
Ele é uma adaptação de “Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment”, de Yanis Varoufakis, o ministro grego das Finanças em 2015. Foi quando a Syriza, a Coligação da Esquerda Radical, ganhou as eleições e a oposição intransigente virou governo da noite para o dia.

Raios e trovões ameaçavam Atenas. A extrema esquerda fora eleita para romper com os aparelhos apátridas do capital financeiro. Prometera dar o calote na dívida que espoliava o país, contraída por governos servis e corrompidos.

Já um acordo para prolongar a dívida levaria à demissão de milhares de funcionários públicos, a cortes drásticos nas aposentadorias e ao Hades da recessão. Quem se beneficiaria seriam os grandes bancos, que continuariam a extorquir o pagamento de juros escorchantes.

De um lado, estava o pobre e combativo povo grego, apoiando os radicais que elegera. De outro, os banqueiros e rentistas do Olimpo, que controlavam as medusas da Troika —a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu.

Ao dar o calote, a Grécia rasgaria os dogmas religião econômica, abandonaria o euro e se isolaria. Mas a ruptura poderia arrastar os países remediados do sul da Europa, abrindo caminho para uma metamorfose de longo alcance, para a construção de uma sociedade mais justa.

Estava em jogo, enfim, o futuro do capitalismo no continente em que ele nasceu —e “Jogo do Poder” não toca na questão. Faz da política de carne e sangue uma tertúlia acadêmica, como a Troika queria. Para ela, a dívida era assunto de adultos responsáveis, e não da plebe ignara e de seus radicais birrentos.

Em vez de espicaçar os figurões do poder, como fizera com os orangotangos latino-americanos e os camundongos soviéticos, Costa-Gavras os leva a sério, trata-os com luvas de veludo. Sua câmera os registra com a deferência reservada às divindades macilentas —os tenebrosos “especialistas”.

Para piorar, o primeiro ministro grego, Aléxis Tsípras, é pintado como um bobalhão, quase um tucano, e não como uma esfinge que oscila entre a capitulação e a ruptura.

Pá de cal: o ator que o interpreta não tem um fiapo do carisma de Yves Montand.

Como último recurso, o governo convocou um referendo sobre a dívida. E os gregos persistiram: era preciso arrebentar as engrenagens titânicas da exploração. Mas a democracia não bastou.

A extrema esquerda virou cavalo de Troia: acatou o ditado da tirania da Troika e traiu a vontade popular. Nunca diga que um político é revolucionário até ele estar morto.

“Jogo do Poder” não tenta entender o que ocorreu e termina com um coro mudo e conformado. O fracasso do filme deixa uma pergunta no ar. Como o cinema político poderia representar a ditadura da alta finança?

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