Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu férias

Garis não vão a Paris em mundo dividido entre quem tem e não tem dinheiro

'The World in a Selfie', livro de D'Eramo, analisa a indústria que emprega mais de 320 milhões de pessoas

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O poeta russo Yevgueni Yevtushenko esteve no Rio em 1987. Como era um dissidente chapa branca, a burocracia soviética o exibia como prova de que na URSS havia liberdade. Ainda assim, ele chocou os stalinistas pátrios pela defesa firme da abertura iniciada por Gorbachev.

Para pegar as passagens do voo de volta, o poeta passou pela casa da tradutora Josie Mello, em Laranjeiras. Conversaram na porta do prédio e um grupo de gente que varria a rua chamou a sua atenção. "Quem são?" perguntou. "São garis", respondeu ela.

Ele tirou um caderninho do bolso, rabiscou três versos em espanhol e os deu de presente à tradutora: "¿Quiénes son los garis?/ Son los que jamás/ Vendrán a Paris."

A ilustração mostra o rosto de um homem desenhado em linhas grossas e escuras sorrindo e fazendo sinal de dois com a mão. Atrás e através deste homem está ilustrada em tons de laranja a Torre Eiffel contra um céu azul. No céu azul existem algumas nuvens desenhadas em linhas brancas
Ilustração publicada em 17 de junho - Bruna Barros

Yevtushenko tocou assim num ponto analisado pelo intelectual italiano Marco D'Eramo em "The World in a Selfie: An Inquiry into the Tourist Age" (Verso, 288 págs.). Fenômeno definidor da modernidade, o turismo divide o mundo entre os que têm e os que não têm meios de viajar.

A indústria do turismo representa 10% do PIB mundial. Emprega mais de 320 milhões de pessoas, o equivalente à população dos Estados Unidos. Impulsiona a construção de aeroportos, estradas, trens, ônibus, hotéis, restaurantes, residências de praia e campo.

Em que pese o poderio econômico, o turismo é recente, pois que produto de duas revoluções, uma tecnológica e a outra social. A primeira se deu a partir do século 19, com a invenção da locomotiva a vapor, e depois dos automóveis e aviões. A rapidez e o barateamento dos transportes fizeram da humanidade uma espécie seminômade.

Antes, só ricos e religiosos viajavam sem objetivo econômico precípuo. Ao terminar os estudos, os filhos da burguesia passavam um ano no exterior, e então assumiam as empresas da família: era o "grand tour". E desde sempre peregrinos iam a Meca e Roma para rezar.

A revolução social que fomentou o turismo de massa teve 1936 como marco. Foi quando os trabalhadores franceses fizeram com que fossem aprovadas as férias remuneradas, que se irradiaram pelo mundo. Mas permanece a divisão assinalada por Yevtushenko: garis não vão para Paris, e a papa fina passeia de carruagem por Baden-Baden.

Desde então o turismo se segmenta. Há turismo alcoólico (Oktoberfest e 8.662 roteiros de vinhos), esportivo (Olimpíadas e Copas do Mundo), culinário (1.515 festas só para a polenta), musical (Salzburg, Bayreuth), de jogatina (Las Vegas), gay (Marrakesh) e pedófilo (Belém), sem falar nas arapucas Disney.

O turismo pio continua firme e forte, mas mudou. O número de romeiros a Lourdes caiu de 880 mil para 575 mil nesta década. O santuário francês perdeu fiéis para Fátima, devido ao marketing lusitano, e para Santiago de Compostela, que combina caminhada com êxtase místico.

Estão em alta turnês ambientais (Amazônia), safaris (Masai Mara e Parque Kruger) e a observação de nativos carentes (passeios de jipe pela Rocinha). O dominante é a visita a ruínas (Acrópole, Coliseu). O que une todos é a busca do autêntico, que o turista, pela presença, torna inautêntico.

Invertendo a tese de Walter Benjamin, D'Eramo diz que o andarilho busca a aura de algo original, que conhece de reproduções. Já viu a Mona Lisa até cansar, mas teima em tirar um selfie com a tela de Leonardo ao fundo, no qual aparecem dezenas de pessoas idênticas a ele: turistas.

O mesmo ocorre com praias pristinas, savanas subsaarianas e o Pantanal —que só são puros nas brochuras de propaganda. Na prática, a pessoa se vê no meio de um mercado humano, sendo que a mercadoria é ele mesmo: o mala que se despacha, o chato de boné e bermuda, o turista robotizado vagando de cá pra lá.

Sendo que o autômato trabalha de graça. Até 2019, 702 milhões fregueses do TripAdvisor resenharam mais de 8 milhões de hotéis, restaurantes e paisagens pitorescas. Ao conferirem estrelinhas aos lugares e comércios, ajudaram a padronizar uma experiência que deveria ser única.

De Barcelona a Dubrovnik, o turismo devasta cidades. Desde 2008, o Airbnb alugou 4 milhões de residências para 150 milhões de pessoas, em 65 mil cidades de 190 países. Fez com que antigos moradores dos centros fossem para periferias, alterando drasticamente o convívio urbano.

Marco D'Eramo diz que o turismo é inevitável. Uma boa alternativa seria ficar em casa, lendo em paz essa coluna sem saída. Mas quem aguenta? Talvez o melhor mesmo seja você ter viajado no feriado, feito um pouco de turismo. Bom congestionamento na volta.

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