Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Com Cate Blanchett, 'Tár' disputa Oscar com muito barulho e pouca música

Filme investe nas inquietudes atuais, mas só as da classe alta, na luta por cargos

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É tolice especular quem ganhará um Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no domingo. Como quase 10 mil pessoas votam nos concorrentes, o nome da entidade que os coroa é uma relíquia, expressa mais aspirações passadas que realidades presentes.

Ficou para trás a academia, o panteão de luminares que concedia estatuetas. Já a arte nunca foi o critério crucial de Hollywood. Quanto às ciências cinematográficas, elas dizem respeito a técnicas de captação e reprodução de imagens e sons. Lato sensu, o que vale é a indústria.

Stricto sensu, o dinheiro conta muito. A Netflix gastou US$ 40 milhões na campanha de "Roma" ao Oscar de 2019, mais que o dobro do custo do filme. Dito e feito: abocanhou quatro prêmios, até o de melhor diretor, Alfonso Cuarón. E a Netflix se firmou como grande produtora.

Mas o dinheiro por si só não garante o triunfo. Os vencedores têm de estar antenados com o ar do tempo, abordar temas que pulsam no imaginário do público e o levam ao cinema. Não há receitas prontas.

"Roma", por exemplo, é mexicano e em preto e branco. Fala de uma empregada doméstica indígena com uma gravidez indesejada. Serve um menu com latinidade, exploração, minoria e aborto na periferia do mundo. Foi premiado devido à sua relevância ou à má consciência de Hollywood?

Não há filme parecido no Oscar deste ano. "Tár", porém, investe nas inquietudes do presente, mas só as da classe alta –comprimida nos ambientes rarefeitos da música erudita, na luta por cargos e carne, às turras com identidades e redes sociais. É muito barulho para pouca música.

Não há um pobre no filme. O único mestiço é Max, que se diz "pangênero Bipoc", acrônimo de "Black, Indigenous & People of Color". Numa masterclass de Lydia Tár, a maestrina feita por Cate Blanchett, o jovem despreza Bach porque ele teve 20 filhos; era um branco machista, dane-se a sua música.

Tár defende Bach, mas como contraponto proclama ser uma lésbica chamativa como um caminhão da U-Hal –que equivale no Brasil aos da Lusitana. O mundo gira e a carraspana roda: Tár ironiza Max, que a xinga de "fucking bitch" e vai embora.

Cate Blanchett em cena do filme "Tár", de Todd Field
Cate Blanchett em cena do filme "Tár", de Todd Field - Divulgação

Sua discurseira é pontuada por menções às regentes Antonia Brico e Marin Alsop, à compositora Hildur Guðnadóttir e por palavras ídiches e amazônicas. A diva viaja de jatinho, dirige um Porsche maior que um bonde e, afronta suprema, tem os olhos e o porte de Marília Gabriela.

Esse arsenal volta-se contra ela, que emerge das redes sociais como uma Daniel Alves da música clássica, uma Michelle sem as Chopard das Arábias. Uma postagem explícita ata Tár e rata e alude implicitamente às suas taras. Seu charme e veneno atraíram iras.

O pontapé principal foi de Marin Alsop, ex-maestrina da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp. Para ela, o filme podia retratar uma mulher num papel reservado a homens, mas "fez dela uma abusadora". Alsop sentiu-se "ofendida como mulher, regente e lésbica".

Ilustração feita em pinceladas grossas e agitadas. Ela mostra uma pessoa de camisa azul e braços abertos regendo uma orquestra. O fundo é composto por pinceladas em tons de marrom e preto.
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti de 10.mar.23 - Bruna Barros

O argumento é chocho. James Levine e Charles Dutoit cometeram abusos sexuais em orquestras de Nova York e Londres, mas daí a dizer que o diretor Todd Field não poderia ter criado uma maestrina megera é ingenuidade. Fictícias ou não, mulheres excepcionais podem ser cascavéis.

Além do que, o filme busca a ambiguidade. Não deixa claro se Tár levou uma fã obcecada ao suicídio; se abusou de subordinadas; se invejosos a destruíram por vingança. Talvez por isso tenha sido sucesso de crítica e gorado nas bilheterias norte-americanas: custou US$ 35 milhões e arrecadou pouco mais de US$ 4 milhões.

A única certeza é que Tár, como diz sua namorada, é incapaz de uma relação que não seja movida por interesse. Ela é fria como um pepino. Exceto quando está imersa na música –um clichê romântico. A ele se some a celebrização dos maestros, inexistentes até o século 19. De Mendelssohn a Karajan, e dele a Tár, o regente virou astro pop.

Outro clichê é insinuar que a Quinta Sinfonia de Mahler tomou o lugar da Quinta de Beethoven no gosto dos entendidos. O filme tangencia a questão, embora a queda de Tár lembre a sentença de Adorno sobre a arte de Mahler: "Diante da desproporção entre a força individual e a enorme força da sociedade, o indivíduo descobre sua própria nulidade".

O tombo é concreto: cancelada, Tár afunda num fim de mundo sul-asiático. Para quem está numa torre de marfim em Berlim, não há nada pior do que viver num país andrajoso, sujo e de língua indecifrável –aliás parecido com o Brasil.

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