Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Wystan Hugh Auden, libertário e libertino

Em suas ''Obras Completas', jatos de uma poesia rija e eloquente

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A morte de Wystan Hugh Auden, há quase meio século, saiu na primeira página do New York Times. O jornal celebrou com versos, análises e fotos o "maior poeta da língua inglesa da sua geração". Aos 66 anos, morria em Viena um mestre sagrado.

Nem sempre foi assim. Quando os nazistas cercaram Londres, ele se mudou para os Estados Unidos. Por ser gay, insinuaram que era um maricas covarde. Um dos maledicentes foi o dedo-duro George Orwell.

W.H. Auden, que não era de fugir do pau, foi à América atrás de um namorado. Escrevera: "honremos o homem vertical, embora só cobicemos o horizontal". E: "perfis privados em lugares públicos são preferíveis a perfis públicos em lugares privados".

Morara em Berlim, Xangai e Reykjavík. Fez em Nova York poemas que sintetizaram a sensibilidade anglo-americana na Guerra. Voltou a Oxford, sua alma mater, e passava o verão em Ischia, na Itália. Sessentão, comprou em Kittersten, na Áustria, a única casa que teve na vida.

Em 50 anos, as palavras do poeta morto mudaram nas vísceras dos vivos. Sinal disso é a publicação, pela Princeton University Press, do nono volume das suas "Obras Completas". É de se regalar: em capa dura, são seis livros de prosa, dois de poesia e um de libretos e peças.

Eles têm mais de 800 páginas cada um, custam os olhos da cara e estão copiosamente anotados.

Em linhas finas e pretas um homem de gravata está com os olhos fechados e semblante feliz. Seus braços estão levantados como se dançasse. Os cabelos e a gravata se movem com o vento. Ao fundo flores rosas e folhas verdes flutuam e contornam a figura do homem.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 31 de março de 2023 - Bruna Barros

Entronizado nas ruínas do cânone da literatura inglesa, acossada pelo identitarismo, Auden virou apanágio de acadêmicos e fãs de carteirinha.

Até as "Obras Completas", sua prosa jazia em alfarrábios. Ela retém traços da clareza e da surpresa de seus versos. Mas, resenhista profissional, o poeta escrevia sobre tudo e, às vezes, barateava. Seguem exemplos.

Estamos todos na Terra para ajudar os outros, mas não sei por que os outros estão aqui. Os homens pagam um dinheirão a putas para que digam que não são chatos. Quando alegres, gostaríamos de ter um rabo e abaná-lo. Quase todos os relacionamentos começam com exploração mútua, uma troca mental ou física que acaba quando uma ou ambas as partes ficam sem mercadoria. O poeta escreve sobre um homem matando um dragão, mas não sobre o que aperta um botão e joga uma bomba.

Na poesia, as "Obras Completas" mudam de figura. Ali estão a concisão, o inigualável domínio formal, a lírica íntima e solidária. Auden é a passadeira de mão cheia que pega uma forma velha e amarfanhada (o soneto, digamos) e a entrega nova e na moda.

Entende-se também como ele passou de incréu a créu. E fica claro que "The Orators", de 1931, é o seu livro mais atual; e, por isso, o mais obscuro. Editado com mão leve por T.S. Eliot, ele abarca –com uma colagem de cartas, argumentos, diálogos, preces materialistas e diagramas– um desengano histórico.

É o desengano com a noção de herói romântico, encarnado por D.H. Lawrence, que todavia não é nomeado. "The Orators" esmiúça a prática biscateira e a oratória balofa da esquerda oficial. Bem antes do fascismo vencer, viu que vinha o pontapé na cara. Parece falar ao Brasil.

Da nervosa excitação e das insanidades do anseio; das culpas e dores adiadas; do peso do meio-dia e do horror à meia-noite, livrai-nos, Auden. Da salva de palmas metálica e da ferrugem da derrota; da piedade melosa e da altiva fuga; dos que acham que fizeram tudo e dos que nem começaram, livrai-nos.

Livros de Wystan Hugh Auden - Mario Sérgio Conti

Escutai, poeta, os fracos que se juntam contra os fortes e os sete contra Tebas; ouve a virgem com medo de trovões, as mulheres que esculhambam os maridos, as solteironas solitárias na janela; os que pedem emprestado, os que não conseguem pagar nem dormir e relutam em desistir, escutai-os, Auden.

As "Obras Completas" têm centenas de esboços, emendas e poemas abandonados no meio. Mas falta um, aquele no qual o libertário e o libertino confluem. É "The Platonic Blow", título que pode ser traduzido para "A Chupeta Platônica", desde que o adjetivo seja sinônimo de "perfeita", e não de algo espiritual.

Começa assim: "Era um dia de primavera, um dia no cio, o ar tinha aromas de vestiário, um dia para chupar ou ser chupado". Em 34 estrofes de quatro versos iâmbicos, rimados em ABAB e acentuados na última sílaba, ele narra uma felação com um crescendo de imagens micro e macroscópicas.

Foi escrito em 1948, mas só em 1968, um ano depois do homossexualismo deixar de ser crime na Inglaterra, Auden admitiu, ao Daily Telegraph, que o escrevera. É um poema comprido, grosso, eloquente e rijo que pulsa e acaba num jato. Só mesmo Auden.

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