Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Em 'O Litoral das Sirtes', a sina das repúblicas inflamáveis e estagnadas

Publicado por Julien Gracq em 1951, obra ganhou o Goncourt, recusado pelo autor

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A prudência dos mortos perdura no sangue dos vivos. O sol negro no céu opaco aveluda o musgo da aurora pegajosa. O feltro esponjoso de folhas mortas abafa os passos no úmido labirinto pátrio. O sangue coagula no coração da cidade inflamável e entorpecida.

Um rio de imagens assim –sonoras, opulentas, lodosas– fertiliza o romance "O Litoral das Sirtes". Há décadas fora do prelo, ele saiu agora relançado com uma ótima tradução de Júlio Castañon Guimarães (Carambaia, 301 págs.).

Publicado em 1951 por Julien Gracq, um professor do secundário, o romance causou frisson na França. Ganhou o mais prestigiado prêmio literário, o Goncourt, que o escritor recusou para protestar contra a mercantilização da literatura.

Passados mais de 70 anos, "O Litoral das Sirtes" se firmou como obra incontornável. Na forma, ela combina realismo acre e pesadelo surreal; na substância, é uma ficção acerca de repúblicas estagnadas, aquelas onde tudo treme e nada muda.

Feitio e fundo estão fundidos numa bigorna de ferro que, amarrada ao pescoço do narrador, é atirada num poço abandonado. Uma sensação de perigo brutal lhe enrijece a nuca, arqueia os ombros e bloqueia o peito até que caia na água sem saída, onde se debaterá para sempre.

O narrador do romance é Aldo, filho de uma venerável família de Orsenna, cidade-estado inspirada na velha república veneziana, em portos dos Balcãs e em urbes muçulmanas do Levante e da África mediterrânea.

Aldo vai vigiar no litoral das Sirtes, onde há três séculos a Senhoria de Orsenna guerreia com o Farghestão, nome que ecoa Afeganistão, Azerbaijão e que tais.

Se a geografia do livro é fugidia, sua política é água no ralo. Não se sabe a razão da guerra entre o Farghestão, cujos soldados sumiram, e Orsenna, onde marinheiros se tornaram camponeses em fazendas de potentados. Reina um armistício cúmplice, mas do qual ninguém fala.

Ao centro um círculo preto e abaixo duas pedras imersas na água que também é preta. Acima de tudo uma névoa marrom que cai.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 14 de abril de 2023 - Bruna Barros

Esse mundo mofado é movido a tramoias. O poder se apoia em boatos. Vagas intenções passam por atos reais. Como cada gesto nulo dos poderosos é esmiuçado com lupa, parece que se lê uma crônica da política brasileira, cuja bandeira é a sacrossanta união em prol da irrelevância.

Com a diferença que a linguagem de "O Litoral das Sirtes" brota como líquen de ruínas decrépitas e séculos letárgicos. Seu partido é o das vozes inextinguíveis do desejo. Sua força é a da foice que se abate sobre o trigal de personagens podres e ceifa suas cabeças de palha.

A linguagem colide com as figuras do romance, enterradas até o talo numa necrópole de chamas errantes e fúnebres que crepitam em praças empanturradas de morte.

Aldo destoa desse torpor pestilento. Desafia o capitão Marino, devoto cego das liturgias pétreas do Almirantado. Na Sala de Mapas, o jovem rico vindo da capital cogita cruzar a tênue linha vermelha que separa as Sirtes do Farghestão.

Ele se liga à princesa Vanessa, da família senhorial que um dia traiu Orsenna e se aliou aos infiéis. Adota o lema heráldico do clã da amante: "Ultrapassarei os limites". Numa noite de brumas, pilota a nau O Intrépido até a praia inimiga.

Disparam-lhe salvas de canhão. Retorna ao porto e ao pasmo geral por ter desafiado o status quo. Enquanto Orsenna ferve de fofocas, Aldo é chamado às falas pelo temível Conselho de Vigilância. Um velho encarquilhado o atende e, em vez de puni-lo, promove-o.

Não fica claro o que de fato ocorreu, porque o diálogo entre os dois é de elipses e alusões, de subterfúgios e subentendidos. Talvez Aldo tenha sido manipulado pela Senhoria para provocar uma guerra de verdade –que, por fim, nem começa. Tudo de novo volta a nada.

Só uma vez a esperança faísca no livro, não por acaso num tumulto de massa: "Todo um povo, abandonando suas vielas e seus porões, acotovelava-se por instinto na desordem rumo ao único dia em que vale a pena que a ele nos entreguemos: o grande dia claro".

Que tempo é esse, de modorra e vislumbre de uma revolução vinda de baixo? No posfácio, Etienne Sauthier diz que o romance fala da "drôle de guerre", os nove meses de 1939-40 em que soldados franceses e alemães ficaram frente a frente, mas inertes. Comunista, Gracq saíra do PCF pouco antes, quando Stálin assinou o pacto de não agressão com Hitler.

Já Antonio Candido, num ensaio de "O Discurso e a Cidade", conclui que o livro deságua "numa negação suprema, a destruição do Estado, obscuramente desejada como possibilidade de pelo menos provocar um sinal de vida na sociedade parada".

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