"Pensa no pai e chora. Pai que teria hoje 133 anos." Eis duas frases banais. Mas, espera aí: se o pai teria 133 anos, quer dizer que seu filho beira os cem anos e continua a chorá-lo?
"Vou te contar uma coisa engraçada. Eu estava no pau de arara, pronto para ser torturado." O que haverá de engraçado num caso de sevícia?
"Sou uma casa vazia. Mas tem um cachorro latindo dentro." Como é possível que alguém seja uma casa, e ainda por cima vazia, mas com um cachorro dentro?
"No dia 26 de fevereiro de 1975 ele saiu para o trabalho e sumiu no ar, com carro e tudo." O desaparecimento se deu por passe de mágica?
"Eu te amo e você me ama, mas enquanto o Irã e o Iraque estão a um passo da guerra total, depois dos violentos combates travados ontem (21 de setembro) entre os dois países, e novas estratégias se planejam com lógica sinistra, nada podemos fazer –por isso escrevemos textos." Quais seriam os laços entre o amor, uma guerra e o ato de escrever?
"Todas as quartas-feiras chuvosas, Marcelo baixa o jornal e sorri para mim pela última vez, antes de tentar fugir da polícia política." Como a leitura do jornal e um sorriso num dia de chuva irão desembocar em um desaparecimento?
Do nada, sentenças intrigantes como as acima surgem nos relatos de "Todos Juntos – 1976-2023", a ficção completa de Vilma Arêas, publicada pela editora Fósforo. É uma literatura que desnorteia; foge da literatice; está rente à vida reles; exorciza o inefável; exalta a faina de deserdados.
Ela mistura amargor e graça. Por exemplo: "o Brasil, indubitavelmente, é um país cheio de pássaros, com dias longos e noites curtas, pessoas cordiais aspirando apenas a algo indefinível que transforme suas vidas". O raio é o "indubitavelmente".
Por falar em raio, um bom naco da arte de Vilma Arêas está resumida no título do seu livro de 1988, "Aos Trancos e Relâmpagos". A mutação da fórmula corriqueira preserva a buraqueira da prosa, que não pega no tranco; é preciso percorrê-la com atenção para não cair em abismos e arapucas.
Já os barrancos viram relâmpagos porque estes vêm de cima, antecedem o estrondo, espantam. Relâmpagos iluminam, mas dão a ver umas poucas figuras trêmulas por um breve instante, se tanto. A leitora que complete o panorama, interprete a cena, ache o anel no areal; ele está lá.
A ficção arisca de Vilma Arêas é, com perdão pela má palavra, de vanguarda. No sentido que, em vez de vir com o nhem-nhem-nhem de praxe, busca formas que captem o abominável mundo novo. Mobiliza o raciocínio e a sensibilidade de quem a lê para desalinhar, desalienar.
Ir na vanguarda implica riscos e revezes, ser sutil aqui e se esfolar ali. Faz parte. Alguns contos de "Todos Juntos" são, de fato, indevassáveis. A ponto de "Aos Trancos e Relâmpagos" ter ganhado um prêmio de literatura infantil –mas muitos juram que é para gente entrada nos anos.
Ao que parece, Vilma Arêas recorre ao autobiográfico. Contudo, a vivência concreta não se centra nela, acolhe e entrona os outros. É assim que esconjura os gemidos do ego e a modinha da hora, a autoficção: "Trato saudade ou depressão a tapa. É preciso chicotear essas vadias".
A lépida autora que estapeia e chicoteia tem 87 anos. Professora de literatura, tem livros sobre Martins Pena e Clarice Lispector. Sua prosa ecoa o rés do chão de Bandeira, o à queima-roupa de Dalton, as gemas de Francisco Alvim, as pilhérias de Zuca Sardan, o ovo e a galinha de Clarice.
Para além do detectável, uma pergunta talvez permeie "Todos Juntos", a de Drummond, que João Gilberto tanto repetia: "E se todos nós vivêssemos?". Não é uma pergunta metafísica, mas histórica. No poeta, ela brota da brutalidade do Estado Novo; na prosadora, da bestialidade da ditadura militar.
Antes, agora e sempre, a violência. Ela está no cerne da política e, do jeito que o livro a expõe, serve de esqueleto para a vida nacional. A violência vitima a plebe, a gente pobre e perdida que vaga por aí até que a literatura de Vilma Arêas a ache –e nos transfigure.
"Todos Juntos" começa com um conto inédito, "Tigrão". Ele fala do convívio na cadeia de um militante com um assassino do Esquadrão da Morte. O ex-policial é um monstro que todos ostracizam, só o rebelde o trata de igual para igual.
O encontro faz com que, num momento decisivo, a vida de um deles mude. Mas aí a história segue adiante, os enigmas permanecem e, na última frase, o conto diz: "A ferida continua aberta, e dela o sangue flui ainda."
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