Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Festival de Cannes

Morte de Léa Garcia traz ao presente o Brasil exótico de 'Orfeu Negro'

Seria bom revê-lo, porque reatualiza problemas nacionais irresolvidos

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Lata d'água na cabeça, lá vai Léa Garcia. É no alto de uma favela carioca que ela desabrocha em "Orfeu Negro". No papel da serelepe Serafina, equilibra a lata na cabeça, requebra e leva água a barracos esquálidos no topo do morro. Atabaques rufam e cuícas choram.

O filme não se enoja com a miséria. Ao contrário. Celebra a fibra, a alegria, a arte, os mitos e ritos do Brasil negro e pobre. Tudo isso está sintetizado na magnética atuação de Léa Garcia. Ela dá vida a uma
diva livre, a uma libertária e libertina que faz o que quer.

A atriz morreu na terça (15), horas antes de receber um prêmio especial no Festival de Gramado. Não pôde curtir a salva de palmas pelo seu aniversário de 90 anos, a festa por estar num batente iniciado em 1952, no Teatro Experimental do Negro.

Um justo tributo seria passar no cinema uma cópia restaurada de "Orfeu", como a que vi no Grand Action, em Paris. Não só para você se deleitar com Serafina —a moça da pá virada que atiça a mocinha Eurídice e afronta a megera Mira.

Seria bom vê-lo porque "Orfeu" reatualiza problemas nacionais irresolvidos. Como a formação inacabada e deformada; as contradições entre povo preto e elite branca; os mal-entendidos de centro e periferia; o lugar de cada um de nós, nativos, no mundo.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 18 de agosto de 2023 - Bruna Barros

Orfeu vive há mais de 2.000 anos nas "Geórgicas", de Virgílio. Inventor da lira, o músico se apaixona por Eurídice, que morre, e ele vai buscá-la no inferno. Consegue soltá-la, mas não pode olhar para ela até que emerjam das trevas. Orfeu arrisca e, ó fado funesto, Eurídice morre.

Nos anos 1940, Vinicius de Moraes ciceroneou o escritor americano Waldo Frank numa viagem de 40 dias pelo Brasil. Foi com ele a terreiros, bordéis, rodas de samba, palafitas e mocambos. "Saí do Rio um homem de direita e voltei de esquerda", contou o poeta.

A frase de Waldo Frank numa favela ficou-lhe na mente: os negros parecem gregos. Foi ela que o levou a escrever "Orfeu da Conceição". Pediu que João Cabral de Melo Neto a lesse e o pernambucano lhe disse: "Os dois primeiro atos estão ótimos; o terceiro, péssimo".

"Orfeu da Conceição" é, de fato, desigual. Mas retém a guinada que deu gume à adaga de Vinicius: o apreço pela ralé, na forma da música popular e das crenças afro-brasileiras.

Por isso pediu a Tom Jobim que a musicasse. Realista, o garoto de Ipanema perguntou: "Tem um dinheirinho aí?". Léa Garcia integrou o elenco totalmente negro da primeira encenação, de 1956.
Os cenários eram de Niemeyer.

Atriz Lea Garcia posa em morro do Rio de Janeiro, com orla de praia ao fundo
Léa Garcia em 'Orfeu Negro' (1959) - Divulgação

Na época, Marcel Camus se encantara com o Rio. Fora preso pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial e dirigira havia pouco um filme que, por flagrar a ocupação na Indochina, foi proibido no além-mar. Vagamente, "Orfeu Negro" propugna harmonia antitética à guerra colonial que a França travava na Argélia.

Camus açucarou a brasilidade de Vinicius e rebatizou o filme para "Orfeu Negro", título de um ensaio no qual Sartre dizia: "A descida incansável do negro para dentro de si mesmo me faz pensar em Orfeu indo recuperar Eurídice".

Disse mais, Sartre: "Um judeu, um branco entre brancos, pode negar que é judeu e declarar-se um homem entre os homens. O negro não pode negar que é negro nem reivindicar para si a humanidade
abstrata e incolor: ele é negro".

Mesmo feito antes da bossa nova, do cinema novo e de Brasília, o filme mostra um Rio moderno. O Ministério da Educação, de Le Corbusier, aparece de lado, lindo; o Monumento aos Pracinhas está nos andaimes; um bondinho que é um arabesco percorre os Arcos da Lapa.

Musicados por Jobim, os versos de Vinicius exaltam a cidade "a sorrir, a cantar, a pedir a beleza de amar". O povo retinto e reto samba na favela cheia de flores, aves, cabras, até cavalo. De cima, o mar enche os olhos, beija areias do Flamengo, Botafogo e Copacabana.

"Orfeu Negro" ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de filme estrangeiro. Já a repulsa dos brasileiros a ele começou pelo próprio Vinicius. O poeta o viu no Palácio do Catete, junto com JK, o presidente. Ficou tão nauseado com a falsidade que saiu no meio.

Nem todos no exterior caíram na macumba para turista de Camus. Godard, ainda só um crítico da Cahiers du Cinéma, escreveu: "'Orfeu Negro' é de uma inautenticidade total".

Mas, com olhar agudo, Godard sublinhou a cena em que a Serafina-Léa Garcia leva para a cama um marinheiro chegado à malvada pinga —a câmera mostra os pés deles entrelaçados, e em seguida a mão marota da moça apaga o abajur.

No New York Times, no ano 2000, Caetano Veloso escreveu que "o contraste entre o fascínio que 'Orfeu Negro' gerou no exterior e o desprezo com que foi tratado pelos brasileiros, que se viram retratados como exóticos, é um convite a reflexões sobre a solidão do Brasil".

Reflexões que poderiam passar por Paulo Emílio Salles Gomes: "Não somos europeus nem americanos do norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro".

Ou por Sérgio Buarque de Holanda: "Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra".

O Brasil de "Orfeu Negro" projeta luzes e sombras no presente. Como aquele país fantasmagórico ainda pulsa, se bem que tenha mudado muito, o filho de Sérgio Buarque de Holanda, Chico, publicou em 2021 "Copacabana".

No conto, Ava Gardner faz questão "de subir ao morro onde rodaram 'Orfeu Negro', musical a que assistira inúmeras vezes". Lá, a molecada trepa no capô do conversível rabo de peixe e malandros apalpam a bunda da atriz —até que um chefão do tráfico a leva embora numa Harley-Davidson.

"Copacabana" é um retalho da nação na qual evangélicos acossam o candomblé; o samba deu lugar ao rap, ao sertanejo, à sofrência; a luta de classes murchou; traficantes e milícias enquadram favelados; a Parada Gay abraça a Marcha para Jesus; o imperialismo nos vela; Janja ri e Michelle chora.

Senta que o Brasil é manso. Valei-nos Léa Garcia.

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