Clémence é prefeita na periferia de Paris no filme "Belas Promessas", em cartaz no Belas Artes. Ela hesita entre reformar um conjunto habitacional em petição de miséria e abandonar a política ou enterrar o projeto e ser nomeada ministra.
A prefeita não é uma Artur Lira de tailleur, mas seu pragmatismo lembra o do barão das Alagoas. Em gabinetes, eles dizem "faço o que posso pelo povo e com mais poder farei ainda mais"; e acalantam na calada da cama a cláusula pétrea "se a farinha é pouca, meu pirão primeiro".
É com brandura que "Belas Promessas" mostra o toma lá dá cá da política. Como oculta se a prefeita é de esquerda, centro ou direita, insinua que todos os gatos são ratos, e não caçam a si mesmos. Com esse capacete de realpolitik, até Lira deliraria na motociata pró-status quo que é o filme.
"Belas Promessas" não aprofunda um centímetro no entendimento da política, não vale uma ida à esquina da Consolação com a Paulista. Exceto por Isabelle Huppert. E ainda mais agora.
A atriz fez 70 anos na última quinta-feira (16). Atuou nuns 120 filmes em mais de meio século. São números vagos, porque ela disfarça a idade e esteve em tantos filmes e peças que não se sabe quantos. Contracenou com Cate Blanchett na Broadway, em "As Criadas", de Genet —e você perdeu.
A sua prefeita Clémence põe a máscara da política profissa. Impede que se perceba o que pensa porque não pensa; age para ter poder. Matreira, estampa um sorriso calcinado, apunhala a afilhada pelas costas e emudece quando a sós com assessores fiéis.
Só ao perceber que perdeu a parada ela se permite externar uma emoção, que contudo é gélida: política é assim mesmo, dane-se. É com mímica minimalista que a atriz delata a prefeita.
Pode ser que não seja nada disso, todavia. Talvez o que o filme mostre mesmo seja uma atuação corriqueira. O que "Belas Promessas" promete e entrega são sombras e sobras do que Isabelle Huppert impôs ao cinema: agudeza, distanciamento, crítica.
Para Hitchcock, tal imposição é impossível: "Os atores se dividem entre os que têm talento e nunca receberam nenhum reconhecimento por isso e aqueles que receberam reconhecimento sem ter nenhum talento. De qualquer forma, são gado".
Isabelle Huppert nunca foi uma vaca que diretores pastassem a seu bel-prazer até que –muuuuuu– ela fosse para o brejo.
Mas foi hitchcockiana: "Não acho que atores sejam artistas. Usamos demais essa palavra. Sou uma intérprete: o universo de alguém é expresso por meu intermédio". A atriz seria um pincel? Ela matutou e saiu-se com essa: "Digamos que eu seja a tela". Eis a modéstia de uma antiprima-dona.
As declarações do rei do gado e da pintora flagram a eterna querela entre os que fazem filmes. Nos Estados Unidos, onde o controle dos conglomerados é férreo, filme bom é o que dá lucro. Na Europa, a latitude artística é um pouco maior, seja de diretores, seja de elencos.
No Brasil, onde nunca houve indústria cinematográfica, é diferente. A dramaturgia nasceu no circo, roçou o teatro, raspou o rádio e empacou na TV. O modernismo chegou à literatura em 1922 e só vingou nas telas com o Cinema Novo dos anos 1960. É chato porque Sônia Braga, superestrela de cinema, virou cometa: aparece num filme por década.
Isabelle Huppert criou uma mística própria porque tem talento e trabalhou com grandes diretores: Tavernier, Godard, Losey, os Taviani, Ferreri e, sobretudo, Chabrol. Beneficiou-se do que aprendeu com eles e inventou do nada um modo de interpretar.
Ela mudou ao longo dos anos –seu cinema é busca– até tornar-se a silhueta arisca e hierática de hoje, apesar de magrinha e com 1,60 metro. Quatro séculos separam a prostituta sardenta de "O Portal do Paraíso" (1982), de Cimino, da condessa doida de "EO" (2022) , de Skolimovski.
A pirueta de uma figura para a outra se deu em dois filmes de Chabrol dos anos 1990: "Madame Bovary", um exercício acadêmico prestigioso, e "Mulheres Diabólicas", comédia perversa na qual ela dirige o morticínio de uma família bem-posta na vida.
Fez fama fora da França com atuações escandalosas, com as cenas de estupro e sadomasoquismo de "A Professora de Piano", de Haneke, e de "Elle", de Verhoeven, ambos dos anos 2000.
Com a diferença de que o primeiro é um drama freudiano do qual o espectador sai do cinema com a boca cheia de superbonder e do segundo sai com a bela promessa de nunca mais ver nada de Verhoeven –mas na fissura pelo próximo filme de Isabelle Huppert.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.