Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Pesada e suja, a solidão da modernidade na prosa de Baudelaire

Livro da Companhia das Letras é dedicado exclusivamente à prosa do escritor francês

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Com exatas 999 páginas, o livro está na fronteira da comodidade com o desconforto. Dá para manuseá-lo numa poltrona, mas não no metrô. É obeso física e financeiramente: pesa um quilo e custa R$ 130. O ideal seria tomá-lo emprestado numa biblioteca.

O volume fala de tudo, ou quase. De moda e maquiagem. De haxixe, vinho e ópio. Da "pesada e suja atmosfera parisiense". Tem diários, contos, ensaios. Crítica de literatura (Poe), música (Wagner), pintura (Delacroix) e até de caricatura (Daumier). É desbragadamente heterogêneo e desigual.

Apesar dos excessos –e talvez devido a eles–, "Prosa", de Baudelaire, da Companhia das Letras, é um grande lançamento. Com uma nova tradução, de Júlio Castañon Guimarães, ele retorna à gênese da experiência que ainda nos é cotidiana e define, a modernidade.

Basta andar pela avenida Paulista para ver as "almas errantes que buscam um corpo". A "multidão de párias que se amontoam". Os "cansados de nada terem feito". A "turbulência no vazio". O inferno "fervilhante de cupidez e desespero". Os ricos para quem "a caridade é um bom negócio". Só falta Baudelaire à modernidade paulistana.

Endividado e sifilítico, ele trabalhou "cegamente, sem objetivo, como um louco," para concluir: "multidão, solidão". Foi criatura do levante de junho de 1848 e do golpe que, três anos depois, abriu caminho para a ditadura de Napoleão 3º.

Ao centro da imagem um grande livro de capa azul. A sua volta pequenas formas em linhas pretas sugerem pessoas, que interagem com o livro como se fosse um elemento arquitetônico. Ao fundo e abaixo tons de vermelho, amarelo, azul e cinza como ondas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 15 de setembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

Lembrai-vos dos idos de junho de 2013, do levante ao qual se seguiu, cinco anos depois, a eleição ilegítima de Bolsonaro, outro rufião bonapartista. Terminam aí as afinidades entre a França do século 19 e o Brasil do 21.

A ditadura de Bonaparte, com seu bando de lúmpens e milicos, deu a largada para um surto de especulação, de conluio entre empreiteiros e governo, de progresso e corrupção, que revirou Paris do avesso.

De fuzil na mão, Baudelaire galgou barricadas na sublevação de 1848. Conclamou todos a "fuzilar o general Aupick". A fúria não era política –Aupick era seu odiado padrasto. Edipiano e egocêntrico, escrevera que, "quando se tem um filho como eu, não se casa outra vez".

Com a derrota da revolução, o escritor deu as costas à política. Também não participou da demolição da Paris medieval, ocorrida quando o barão Haussmann, prefeito, pôs abaixo quarteirões, abriu avenidas, subiu as construções que fizeram de Paris a capital da modernidade.

O que Baudelaire fez foi detectar as mudanças na sensibilidade, a atomização social, a instabilidade permanente, o enriquecimento de uns em função da exploração de outros. Deu forma poética à nova urbanidade num livro único, "As Flores do Mal", censurado assim que saiu.

O livrão da Companhia das Letras é o mais extenso e dedicado exclusivamente à sua prosa –ou seja, não tem "As Flores do Mal", feito só com versos. Além dos ensaios em que Baudelaire inventa o conceito de modernidade, porém, "Prosa" traz, sim, poesia.

Ela está em "O Spleen de Paris. Pequenos Poemas em Prosa". É outra invenção do escritor, que a imaginou como apêndice a "As Flores do Mal", uma adaptação "aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência".

"Spleen" tem 50 textos híbridos: fragmentos, situações, anedotas, minicontos, reflexões, casos crus e cruéis. Abarcam uma cidade grande e estilhaçada, uma massa de pobres diabos anônimos, de viúvas, de pedintes e mesmo "um magnífico imbecil que concentra em si todo o espírito da França".

Em "A Cada Um Sua Quimera", o escritor cruza com homens recurvados. Cada um carrega uma pesada e feroz quimera –o monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente. Mas "nenhum dos rostos cansados e sérios dava sinal de desespero".

Eles partem e o prosador tenta entender por que estão tão resignados, a ponto de não saberem que o são. Não consegue, e constata: "a irresistível indiferença abateu-se sobre mim, e isso me deixou mais pesadamente oprimido que eles com suas quimeras".

Em "Os Olhos dos Pobres", o narrador e sua amada creem que têm os mesmos sentimentos, são almas gêmeas. Sentam-se num café e surgem um mendigo e seus filhos.

O narrador se comove com o olhar dos pedintes, fita a amada certo de que ela está emocionada também. Contudo, ela diz: "Essas pessoas são insuportáveis com seus olhos abertos como portões! Você não poderia pedir ao dono do café para as afastar?".

Eis a modernidade de Baudelaire: ver que cada qual carrega a quimera da indiferença, e que nem os que se amam se entendem.

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