Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Um filme sobre a imperatriz libertina seria muito melhor que sobre Napoleão

No cinema, ele é sempre o padroeiro dos hospícios; nenhum filme sobre Bonaparte presta

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Filmar a vida de Napoleão é uma fria. Há mais livros a seu respeito do que sobre César, Maomé, Marx, Hitler e Gilberto Kassab somados. Mas, no cinema, ele é sempre o padroeiro dos hospícios, um chato de chapéu de duas pontas, mão na pança e madeixa colada na testa. Nenhum filme sobre Bonaparte presta.

Hegel entusiasmou-se ao vê-lo quando invadiu Jena. Disse que era a "alma do mundo" a cavalo. Encarnava a Revolução Francesa, as fúrias que o levaram a defender, de sabre na mão, tanto as virtudes da República rebelde quanto os vícios do Império restaurado.

Arte de sons e imagens em movimento, o cinema pena para expressar o espírito de tempos tumultuados. Privilegia corpos concretos em detrimento do espírito histórico. É o que acontece no "Napoleão" de Ridley Scott: ações estrepitosas e raciocínio ralo.

Ele esmigalha o corso e sua era no triturador de almas dos dramas históricos com início, desafios, ápice, derrotas, ruína e redenção. É o puído esquemão das cinebiografias de Cleópatra e Lady Di, Che e Kennedy e —cá neste canto do mundo— Pedro 1º e Marighella.

A primeiríssima frase de "Napoleão" proclama que as revoluções nascem da fome e causam mais fome ainda. Ora, as três revoluções canônicas vieram a degringolar, mas franceses, russos e chineses melhoraram de vida. Como não há revolução à vista, Scott assedia uma assombração ideológica.

A França é outro fantasma do filme, pois que ele exalta a contrarrevolução capitaneada pela pérfida Albion e a vitória do garboso bretão Wellington sobre o corso tosco. Só o rancor atávico explica que, dois séculos depois de Waterloo, o rosbife Ridley Scott teime em aporrinhar as rãs gaulesas.

O que sobra de "Napoleão" é a guerra. Pelo que ocorre na Ucrânia e em Gaza, constata-se que o filme reza conforme o credo dominante, aquele que prega a morte em massa. Se há anos o pacifismo ajudou a acabar com a Guerra do Vietnã, agora o que se escuta é "mata, esfola!".

A ilustração é toda feita de desenhos rápidos com caneta azul. No canto esquerdo a figura de Napoleão com uma coroa na mão emerge de um livro. Um desenho em tamanho maior detalha a figura da coroa e abaixo um busto de uma mulher. No canto direito dois esboços de Napoleão com seu grande chapéu e no centro Charles Chaplin em "O grande ditador" com o globo terrestre na mão.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 8 de dezembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

Os melhores filmes sobre o Ogro não foram feitos. Charlie Chaplin imaginou que, durante o exílio do imperador belicoso, um sósia seu pacifista zanzava pela França. O filme pifou, mas Chaplin reciclou a ideia em "O Grande Ditador", trocando Napoleão por Hitler.

Stanley Kubrick passou anos estudando Bonaparte. Tinha o roteiro na mão quando soube que em breve começaria a filmagem da superprodução "Waterloo". Resultado: uma tolice com Rod Steiger, detestável até o último fotograma, tomou o lugar do bom filme em potencial.

A pesquisa não foi em vão. Kubrick usou-a em "Barry Lyndon", o caipira irlandês que luta nas guerras napoleônicas e tem traços do arrivista vindo da Córsega. Sua mãe é idêntica à do imperador, Letícia.

E o narrador que faz comentários melancólicos é o do "Napoleão" que gorou.

Kubrick juntou gravuras, desenhos e ilustrações sobre o general. Montou uma biblioteca com 500 livros a seu respeito. Fez com que fotografassem palácios, ruas, móveis, vestidos e fardas de então. Contratou o historiador Felix Markham, catedrático em Oxford, como consultor.

Tudo isso —mais ensaios, fichas, entrevistas, a transcrição das conversas com Markham, cartas para atores, 17 mil imagens e o roteiro do filme— está num livro da editora Taschen. Com 1.112 páginas, tem o porte e o peso de um bloco de concreto.

Com propriedade, seu título é "O Maior Filme Nunca Filmado". Aprende-se muito com o livro —das ferraduras dos cavalos do grande Exército na campanha da Rússia, na qual todos morreram atolados na neve, à maneira marcial e maníaca (napoleônica?) como Kubrick trabalhava.

Ele não era dado a elucubrações. Achava que o filme teria "um herói imponente. Combates armados. Um amor trágico. Amigos leais e traiçoeiros. Muita bravura, crueldade e sexo".

Nesse último aspecto, a imperatriz Josefina não era, como Ridley Scott quer fazer crer, um apêndice aristocrático do ilhéu plebeu. Viúva de um nobre guilhotinado, sem ter como sustentar os filhos, ela passou a entreter os novos próceres numa alcova oval com espelhos do chão ao teto.

Casou com Bonaparte para que ele sustentasse seus gastos, para lá de faraônicos, e porque ele iria guerrear no Egito uma semana depois. Mal pôs o pé na estrada e a libertina o chifrou com gosto e às escancaras.

Kubrick queria que Audrey Hepburn fizesse Josefina e cogitou Jack Nicholson para ser Napoleão. Se assim fosse, o filme teria de se chamar "Josefina". Nicholson seria um coadjuvante careteiro.

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