Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Como escapar à armadilha da dívida excessiva

Os ricos se beneficiarão caso criemos demanda sustentável com menos endividamento dos domicílios

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“É completamente impossível... para os ricos poupar o tanto que eles vêm tentando poupar, e poupar qualquer coisa digna de ser poupada”. Marriner Eccles em depoimento ao Congresso dos Estados Unidos, 1933.

A dívida cria fragilidade. A questão é como escapar da armadilha. Para respondê-la, precisamos analisar por que a economia mundial se tornou tão dependente do endividamento, hoje.

Isso não aconteceu por conta de caprichos ociosos dos dirigentes de bancos centrais, como muita gente supõe.

Aconteceu por conta do desejo excessivo de poupar, comparado às oportunidades de investimento disponíveis. Isso suprimiu as taxas reais de juros e fez com que a demanda passasse a depender demasiadamente de dívidas.

Dois estudos recentes iluminam tanto as forças que propelem a alta do endividamento quanto suas consequências. Um deles, diretamente relacionado às posições de Marriner Eccles, que foi chairman do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, entre 1934 e 1948, fala do “excesso de poupança dos ricos e alta das dívidas domiciliares”.

O outro, sobre “demanda endividada”, explica como a sobrecarga de dívidas enfraquece a demanda e gera queda nas taxas de juros, em um circuito de realimentação. Os autores de ambos os estudos incluem os economistas Atif Mian, da Universidade de Princeton, e Amir Sufi, da Universidade de Chicago, bastante conhecidos por seus bons trabalhos anteriores sobre a questão da dívida.

Dois estudos recentes iluminam tanto as forças que propelem a alta do endividamento quanto suas consequências - Gabriel Cabral/Folhapress

Como Eccles disse com tanta clareza, para além de certo limite, a desigualdade enfraquece uma economia ao forçar as autoridades econômicas a fazer uma escolha ruinosa entre desemprego alto ou dívida em constante ascensão. O estudo sobre o excesso de poupança defende dois argumentos.

Primeiro, a crescente desigualdade nos Estados Unidos resultou de um crescimento forte na poupança do 1% de pessoas no alto da distribuição de renda, sem que as oportunidades de investimento o acompanhassem.

Em lugar disso, o ritmo de investimento vem caindo, a despeito do declínio nas taxas reais de juros. O excedente de poupança cada vez maior dos ricos veio acompanhado por uma redução crescente nas economias, ou seja, por consumo superior à renda, entre os 90% de pessoas nas faixas mais baixas da distribuição de renda.

A poupança dos ricos poderia ter levado a um superávit em conta corrente, como aconteceu no Reino Unido no final do século 19. Mas os ricos do resto do mundo buscaram acumular ativos nos Estados Unidos, e com isso geraram um déficit persistente em conta corrente para a economia americana. Exceto no período em que a bolha imobiliária anterior à crise financeira elevou o investimento privado, este também se manteve fraco demais. Os usuários principais dos excedentes de poupança estrangeiros e nacionais foram os domicílios menos prósperos e o governo.

Existe um elo claro entre a poupança dos ricos e o déficit dos menos ricos, e entre o acúmulo de créditos e de dívidas. Desde 1982, o declínio no endividamento líquido dos ricos veio acompanhado por uma alta no endividamento dos 90% mais baixos da pirâmide de renda.

É por isso que o argumento de que taxas de juros baixas prejudicam as pessoas mais pobres é absurdo. As pessoas menos prósperas não têm um grande volume de créditos líquidos. Os ricos têm contas a receber dos menos ricos, não só diretamente, via depósitos bancários, mas indiretamente, por meio de participações acionárias em empresas que têm contas a receber. O fenômeno do crescente endividamento domiciliar e da alta na desigualdade não é exclusivo dos Estados Unidos. É generalizado.

Por que a alta da dívida importa? Uma resposta, como argumenta David Levy em “Bubble or Nothing”, é que a economia passa a ser cada vez mais impulsionada pelas finanças, e se torna cada vez mais frágil, porque os devedores se sobrecarregam.

Outro aspecto é a ideia de “demanda endividada” –parente próxima da ideia de “recessões de balanço” proposta pelo economista japonês Richard Koo. À medida que a dívida dispara, as pessoas se dispõem cada vez menos a tomar quantias elevadas de empréstimo.

Com isso, as taxas de juros precisam cair, para gerar equilíbrio entre oferta e procura e evitar uma desaceleração profunda. Dessa maneira, terminamos na situação em que estávamos já antes da Covid-19, com as taxas reais de juros em zero. Esse é um mecanismo que propele aquilo que Lawrence Summers definiu como “estagnação secular”.

Devemos nos concentrar inicialmente nos Estados Unidos, porque é lá que a oferta e procura mundiais tendem a se equilibrar. Mas fenômenos semelhantes de desigualdade crescente e disparada na poupança são perceptíveis em outras grandes economias, especialmente China e Alemanha.

A primeira costumava exportar seu excesso de poupança aos Estados Unidos, mas agora o absorve com investimentos perdulários em casa. A segunda colocou seus parceiros comerciais em uma situação de crescente endividamento, dentro da zona do euro e além dela.

Assim, como podemos escapar da armadilha da dívida? Um passo é diminuir o incentivo a financiar negócios por meio de dívida, e não de capital. A maneira óbvia de fazê-lo é eliminar a preferência pela primeira com relação ao segundo em quase todos os sistemas tributários.

Também é possível, como argumentaram Mian e Sufi em um trabalho anterior, passar a bancar a compra de imóveis por meio de sistemas de capitalização e não de financiamento. Além disso, temos a imensa oportunidade, agora, de substituir os empréstimos dos governos a empresas, gerados pela crise do coronavírus, por compras de participações acionárias. De fato, levando em conta os atuais juros ultrabaixos, os governos poderiam criar fundos nacionais de investimento instantâneos, e a custo muito baixo.

Mas nada disso resolveria a dependência continuada com relação a cada vez mais dívida, para preservar a estabilidade macroeconômica. Existem duas soluções aparentes. A a primeira é que os governos continuem a captar. Mas, em prazo muito longo, isso deve conduzir a alguma espécie de calote. Os ricos, que são os principais credores do governo, terão de arcar com boa parte do custo, de uma maneira ou de outra. A alternativa é alterar a distribuição de renda, a fim de criar demanda mais sustentável e com ela investimento mais forte, sem causar uma disparada no endividamento domiciliar.

Em 1933, Eccles também disse ao Congresso que “é do interesse dos prósperos... que tiremos deles uma porção suficiente de seu excedente a fim de permitir que os consumidores consumam e que as empresas operem com lucro”. Isso aconteceu, em parte por acidente e em parte deliberadamente, depois da Segunda Guerra Mundial.

Permitir que as dívidas domiciliares e governamentais continuem a crescer não vai estabilizar a economia mundial para sempre. E bolhas nos preços dos ativos não devem continuar a exercer papéis tão importantes em nossas economias. Teremos de adotar alternativas mais radicais. Uma crise é um momento soberbo para mudar de rumo. Comecemos já.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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