Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Mulheres fortes precisam desabar

Desde que decolamos nunca mais nos foi possível aterrissar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há pelo menos três anos procuro nas gavetas, nas sessões extras de terapia e na despensa de casa algo que silencie uma espécie de abatimento existencial. Arrumo obstinadamente minhas meias, bijuterias e remédios. Aumento a análise para três vezes por semana (quase sempre saio da conversa contabilizando mentiras). E devoro amendoins, ainda que eles piorem minhas cólicas abdominais.

Se digo a algum médico que ando assim, com a sensação de que a qualquer momento posso me arrastar pelos cômodos, querem me medicar para depressão ou me mapear de ponta a ponta para descobrir se sou drenada por alguma espécie de tumor. Tem também os que acreditam piamente na falta de vitaminas. Faço exames e mais exames e outro dia tive que ouvir do meu clínico geral: "São bons demais os resultados, chegam a irritar".

Sempre que visito minha mãe, eu me deito em seu sofá e caio em um sono profundo. Ela e minha filha riem da minha cara –"que preguiçosa!". Falam com carinho, mas nem imaginam o desespero que sinto por não conseguir nomear minha indisposição.

Meu corpo dói exatamente como doeu nos piores dias da minha infecção por Covid-19. Minha cabeça dói exatamente como doeu quando fiquei péssima de H3N2. Se não estou doente, por que acordo como se tivesse sido atropelada? Minha garganta arranha semana sim, semana não. Minha barriga incha com qualquer comida que não seja uma sopa rala de hospital. Se não consigo viajar ou ir a festas, dizem que sou estranha, antissocial ou arrogante. Mas como viajar e ir a festas se sinto que estou convalescendo de sabe Deus o quê?

Mulher-Maravilha
Divulgação

Temo ser insuportável, então faço graça e exibo uma empolgação real sobre mil assuntos, mas por dentro eu só consigo pensar quando, por fim, chegará a hora em que me deitarei, em silêncio e sozinha, com almofadas nos joelhos e bolsa de água quente nas costas.

Na última madrugada acordei mais uma vez suando frio, com ânsia e medo de ter que encarar o dia seguinte exausta e desmemoriada. Tinha pela frente 14 horas dedicadas a reuniões, entregas de roteiros, dentista da minha filha, médico do meu pai, contas atrasadas com multas assombrosas, aulas e mais um processo judicial.

Tenho mais problemas do que outras pessoas da minha idade? Com certeza não; ou, melhor dizendo: tenho infinitamente menos dificuldades, considerando o país pobre e preconceituoso onde vivemos.

Me lembrei de algo que aprendi em meu longo histórico de pessoa neurótica: as melhores respostas aparecem justamente nessas madrugadas em que nos perguntamos se daremos conta do que, na verdade, já damos conta. Afinal, o que se passa comigo? Minha mente mandou na lata, sem qualquer enrolação: você precisa desabar.

Como desabar? Onde, como e em cima de quem ou do quê? Penso que se eu não trabalhar no ritmo indecente a que me acostumei, o que vai desabar é a minha casa, e ela cairá como uma primeira peça de dominó, derrubando as paredes de funcionários e parentes.

Um amigo diz que minha família parece um longa-metragem de baixo orçamento: uma criança pequena e dois idosos que precisam mais de mim do que eu deles. Alguns parceiros e amigos são seduzidos pela minha aparente língua afiada e meu comportamento vivaz, mas nem imaginam como fantasio receber atenção e colo para a criança assustada que disfarço a cada vez que conto piadas ou não abaixo a cabeça.

Ninguém entende como uma mulher forte está de saco cheio de precisar agendar seu choro para dali a seis meses. Temos um acúmulo de milhas na cervical e na lombar porque desde que decolamos nunca mais nos foi possível aterrissar.

Mulheres fortes precisam desabar. Não sei em quais terras firmes, ondas quentes ou coxas peludas. Mas eu quero poder não dar conta de tudo algumas horas por dia. E desejo segurar a mão de todas as mulheres com burnout, dores crônicas e depressão, para juntas fazermos um "desabaçaço". Vamos desabar na Paulista, no vão do Masp, no Largo da Batata. Vem comigo nessa luta pela inadiável e salutar queda!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.