Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Fraude e golpe na Bolívia

Ernesto Araújo prometeu derrubar a ditadura na Venezuela; em vez disso, pode ter ajudado a criar uma nova, na Bolívia

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Evo Morales nunca será recordado como os ditadores vetustos tombados durante a Primavera Árabe, ou como um caudilho de araque à la Nicolás Maduro.

Ele também jamais será conhecido pelo esbanjamento dos recursos naturais ou por uma política econômica zimbabuana.

Ele será lembrado por comandar a mais profunda transformação social e econômica de um país latino-americano no século 21.

O que destaca a Bolívia não é a disparada dos indicadores sociais, mas a sustentabilidade da sua economia, imune a variações externas.

A boa gestão do setor do gás, nacionalizado por Evo com o apoio de Lula, septuplicou os recursos do Estado. Até os seus mais radicais opositores evitam a ideia de uma nova privatização.

Mas os bons números escondem graves lacunas estruturais. Se o salário mínimo quintuplicou em dez anos, os jovens continuam enfrentando dificuldades para entrar no mercado de trabalho.

Entre os com menos de 26 anos, o desemprego chega a cerca de 10%. E a precariedade das novas gerações é um dos raros pontos em comum de todas as revoltas em curso ao redor do mundo.

Nas eleições de outubro, um número inesperado de jovens se absteve ou votou na oposição, deixando o partido presidencial, o MAS, em posição desconfortável.

Depois do primeiro turno, os juízes do tribunal eleitoral suspenderam a contagem dos votos numa tentativa clara de manipular os resultados.

Um gesto suicida para um governo desgastado por sucessivas manobras legais para se perpetuar no poder.

O Brasil reagiu e apoiou a organização de novas eleições através da OEA. Mas tudo leva a crer que a salvaguarda da democracia não era a principal motivação da intervenção.

O Itamaraty agiu porque viu na crise institucional uma oportunidade para forçar a mudança de regime.

A palavra golpe foi inventada para descrever situações como a que aconteceu nos dias seguintes.

Diante da pressão internacional e dos protestos, Evo cedeu, aceitou uma auditoria vinculante da OEA e anunciou novas eleições. Mas as forças de segurança forçaram a sua demissão.

Num momento de completa desarticulação dos poderes, um grupo sem legitimidade política e social atropelou a oposição institucional e capturou a presidência.

Composto por personagens obscuros sem qualquer expressão eleitoral, o novo governo parece determinado a consolidar o poder na marra.

Curiosamente, os apelos por novas eleições da parte do brasileiro se tornaram menos audíveis desde a queda de Evo Morales. A explicação é simples. Para o Itamaraty, só vale lutar pela democracia em países governados pela esquerda.

Governos de extrema direita como o do húngaro Victor Órban, que recorre a expedientes piores do que o de Evo, são tratados como aliados e elevados a modelo.

Dúplice e hipócrita, a política externa brasileira acaba tendo efeitos contrários ao esperado. Ernesto Araújo prometeu derrubar a ditadura na Venezuela. Em vez disso, pode ter ajudado a criar uma nova, na Bolívia.

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