Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Mathias Alencastro
Descrição de chapéu América Latina

Constituinte chilena merece respeito

Menosprezado, processo entra na história pela força da sua proposta ecológica

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"Ingênuo", "idealista", "radical". O processo constituinte chileno, que terminou neste domingo (4) com a realização do plebiscito, foi alvo de toda sorte de críticas.

Entregue ao presidente Gabriel Boric no dia 5 de julho, o documento redigido por uma Assembleia de 154 cidadãos independentes aborda todos os temas estruturantes da sociedade chilena, incluindo os mais difíceis, como os direitos de reprodução, de paridade de gênero e do reconhecimento dos direitos
dos povos indígenas.

Duas pessoas se abraçam em uma praça à noite, no Chile
Dois apoiadores da nova Constituição do Chile se abraçam na praça Itália, no Chile, depois dos primeiros resultados da apuração - Martin Bernetti/AFP

Sua legitimidade histórica é inequívoca. A Constituinte cumpre a missão que se atribuiu a geração do 18-O, o nome da explosão social que aconteceu a 18 de outubro de 2019.

No cerne da sua divergência com a geração anterior, a do 11 de setembro de 1973, estava o diagnóstico sobre o legado da ditadura de Augusto Pinochet.

As antigas lideranças do Chile acreditavam na melhora progressiva e negociada do quadro constitucional, embasada pelo projeto político da Concertación. As novas chegaram ao poder com a promessa de refundar o Estado.

Os constituintes chilenos, no entanto, padeciam de duas limitações decisivas. Eles são os representantes de uma nova classe política inspiradora, mas que está no início da sua trajetória. Uma realidade distante da Constituinte brasileira de 1988, por exemplo, composta por políticos experientes, representantes inatacáveis da sociedade civil, e por inúmeras velhas raposas de Brasília.

A segunda limitação é socioeconômica. Embora a situação social chilena seja difícil, é muito melhor do que a sul-africana, quando Nelson Mandela chegou ao poder com a missão de encerrar o apartheid.

A defesa de uma mudança constitucional não encontrou aderência entre os vencedores do capitalismo chileno, que a repudiaram como uma aventura desnecessária num momento de incerteza geopolítica.

Atentos a essas questões, os constituintes foram hábeis ao deixar de lado os moinhos de vento da velha esquerda, como o discurso contra o "modelo neoliberal" e, em vez disso, colocaram a política climática no coração do novo desenho institucional.

A ecologia não consta em apenas alguns artigos da Carta proposta. Ela a permeia e a organiza. Ela introduz noções fundamentais de justiça climática e de preservação intergeracional que ainda estão longe de existir mesmo nas democracias mais avançadas. O novo direito ambiental altera a relação de força entre a sociedade e a indústria extrativista.

O fracasso não teve a ver com os seus supostos exageros utópicos. O movimento pela aprovação da Constituição foi vítima do desgaste do processo de transformação política que o deflagrou. Ele sofreu com a associação negativa ao governo Gabriel Boric e às suas dificuldades em desenrolar o seu programa econômico e social.

Em seguida, seus defensores tiveram de apresentar um texto repleto de conceitos novos num contexto de alta inflacionária inédito para os padrões chilenos. Por fim, uma onda de fake news inundou o debate público com acusações de amadorismo e desorganização.

Retumbante, a derrota representa uma ameaça existencial para o projeto de Boric. O documento, no entanto, fica na história como a primeira tentativa concreta de preparar a América Latina para a
nova era climática.

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