Se você tem dificuldade de entender como a rede Lojas Americanas vinha há anos "escondendo" dívidas equivalentes a R$ 20 bilhões em seu balanço, recomendo que assista a "Bernie Madoff: o Golpista de Wall Street", série documental lançada pela Netflix no início deste ano.
O rombo da Americanas é fichinha perto do tamanho da pirâmide financeira criada por Madoff. Cometido ao longo de mais de uma década e descoberto em 2008, o golpe do financista americano foi estimado em US$ 65 bilhões (cerca de R$ 335 bilhões).
É um ardil espantoso em vários aspectos. Acima de tudo porque foi fartamente denunciado e nada aconteceu. Reportagens jornalísticas levantaram dúvidas sobre os negócios de Madoff em diferentes ocasiões, mas ninguém levou a sério.
Um analista financeiro alertou cinco vezes, em dez anos, a Comissão de Valores Mobiliários (SEC), agência que regulamenta e controla os mercados financeiros americanos, sobre a impossibilidade de os investimentos Madoff alcançarem os resultados que ele apregoava –e nada.
Para você ver que essas coisas não acontecem só nas quebradas do mundo. Investigado algumas vezes pela SEC, Madoff sempre conseguiu convencer os peritos da legalidade de seus negócios.
A série, em quatro episódios, é dirigida por Joe Berlinger, um cineasta que se especializou em documentários baseados em crimes, com especial interesse por serial killers, como Ted Bundy, John Wayne Gacy e Jeffrey Dahmer (este último em "O Canibal de Milwaukee").
Não por acaso, Madoff é chamado de "serial killer" ao longo da série. "Ele é um sociopata que compartilha certas semelhanças com os serial killers que retratei", disse Berlinger à revista Vanity Fair. "Uma total falta de empatia. Se você pega todo o dinheiro de uma viúva, diz que vai cuidar dela e pega esse dinheiro, isso é muito horrível. A outra característica é o narcisismo extremo que o movia."
Um exemplo da falta de empatia e canalhice é relatado por um rabino. Ele afirma que Madoff usou a sua ascendência judaica para conquistar inúmeros clientes judeus frequentando um clube em Palm Beach, na Flórida.
O financista mantinha um negócio legal num andar de um prédio em Nova York, tocado por seus dois filhos e com seu irmão na "compliance", enquanto praticava os crimes num escritório dois andares abaixo, no mesmo endereço.
Ainda que tenha orquestrado toda uma engenharia para enganar os investidores que lhe davam recursos para administrar, Madoff cometeu um golpe aparentemente muito simples: recebia o dinheiro para aplicação, inventava demonstrativos financeiros e embolsava tudo.
Quando alguém queria resgatar o dinheiro aplicado, ele honrava os pedidos. Tudo indica que tinha alguns grandes investidores como sócios ocultos para garantir os saques maiores. Durante a crise que atingiu Wall Street em 2008, que fez os pedidos de resgate se intensificarem, a banca quebrou –e o esquema foi descoberto. Spoiler: foram os filhos que o denunciaram.
Baseado em entrevistas com pessoas muito próximas a Madoff, além de depoimentos que o financista deu ao ser preso, Berlinger persegue a objetividade e evita qualquer simpatia ou glamorização do seu protagonista.
Muitas cenas são preenchidas por encenações com atores, mas eles não falam nunca. É um recurso curioso, que pode causar incômodo, mas que gera um efeito fantasmagórico, bem apropriado para a tragédia narrada.
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