Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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A dupla missão de 'Vai na Fé'

Novela da Globo tenta acenar a evangélicos e desarmar preconceitos, mas cai no caricato

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"Vai na Fé" é uma das experiências mais ousadas e arriscadas da Globo no esforço de acolher diferentes agendas identitárias em sua programação. Lançada em 16 de janeiro, na faixa das 19h30, comumente dedicada a tramas leves e bem-humoradas, a novela conta uma história centrada em torno de personagens negros e evangélicos.

Cinco pessoas de três gerações dividem uma casa em Piedade, na zona norte do Rio: a mãe Marlene (vivida por Elisa Lucinda), sua filha Sol (Sheron Menezzes), o genro Carlão (Che Moais) e duas netas, Jenifer (Bella Campos) e Duda (Manu Estevão).

Quando a novela tem início, Carlão está desempregado e a casa é mantida por Sol, que cozinha e vende quentinhas no centro da cidade. Jenifer é a primeira integrante da família a cursar uma universidade; está começando a estudar direito numa faculdade particular, na zona sul, com bolsa de estudos. Todos frequentam uma mesma igreja e Sol faz parte do coro, que se canta nos cultos.

Para além do bom divertimento que a novela está oferecendo em diversas outras tramas, o núcleo evangélico se presta a uma dupla ação. De um lado, trata-se de um claro aceno da Globo a uma parcela do grande público seguidor dessa corrente religiosa.

Nos últimos dez anos, com seu projeto de minisséries e novelas bíblicas, a Record buscou abertamente se tornar a voz desse segmento. Durante o governo Bolsonaro, dentro das igrejas, lideranças religiosas mais radicais descreveram a Globo como o próprio demônio.

Por outro lado, o núcleo evangélico de "Vai na Fé" tem a função de desarmar os espíritos e quebrar preconceitos do público que não tem interesses religiosos, professa outras fés ou rejeita os evangélicos como um todo.

Resumindo grosseiramente, é como se a Globo, investida do papel da ONU, tivesse enviado uma missão de paz a um campo minado.

Para dar conta desse projeto ambicioso, a autora Rosane Svartman e sua equipe têm feito uma ginástica puxada. A novela tem apresentado a família de Sol e a igreja como ambientes complexos, capazes de gestos de acolhimento, mas também de muita intolerância.

O didatismo exagerado de algumas cenas beira o caricato e o postiço. Como numa cena nesta semana em que a vizinha Neide festeja com Marlene que Sol voltou a vender quentinhas e desistiu da heresia de ser dançarina e backing vocal de um cantor romântico.

"Quem diria que tudo ia voltar ao normal tão de pronto, hein, Marlene?". E a mãe de Sol responde: "Eclesiastes 3, Neide. Tudo tem seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do céu".

O fato de Sol ter esse sonho funciona como uma senha para a novela discutir a questão da intolerância dentro e fora do ambiente evangélico. Ela é vista, ao mesmo tempo, como uma crente não confiável pela empresária do cantor e como uma pecadora pelos membros da igreja.

Em uma cena exibida nesta segunda-feira, o pastor da igreja e a vizinha Neide vão visitar Marlene e Sol. "Todos sentimos a sua falta lá na igreja", diz ele. "Todos? O senhor está sendo gentil", responde Sol. "Tá mesmo", confirma Neide.

Ao longo de dois minutos, então, Sol canta "Quatro Estações", uma canção de louvor de autoria do pastor Kleber Lucas, que diz: "Primavera e verão / No outono ou inverno, então / O Senhor é o meu pastor. / Na alegria e na dor / Eu confio em Ti, Senhor / Nada vai me separar do Teu amor".

Kleber Lucas é um pastor e cantor gospel progressista. Durante a campanha eleitoral apoiou a eleição do presidente Lula (PT). Mais recentemente, gravou uma música sua com Caetano Veloso.

Tentando caminhar, assim, sob um terreno esburacado e repleto de curvas, "Vai na Fé" é uma experiência que merece atenção.

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