Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Série 'Encantado's' é um manifesto sobre diversidade racial

Afirmação na sitcom se dá menos por discussões e mais pela simples representação do elenco no ambiente da história

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Num país com o histórico de racismo como o Brasil, não causa maior espanto que o problema tenha sido colocado embaixo do tapete pela televisão e, em especial, pela teledramaturgia ao longo de diversas décadas.

No livro e documentário "A Negação do Brasil", de 2000, Joel Zito Araújo disseca como se deu esse processo de "branqueamento" no período entre 1963 e 1997.

Ao analisar o "ciclo abolicionista" de novelas na década de 1970, incluindo o maior sucesso entre elas, "Escrava Isaura", lembra que esses folhetins reafirmam a versão de que a libertação dos escravos foi um feito realizado só por brancos.

Assistindo às tramas com temática contemporânea, observa que até houve personagens negros importantes em novelas, mas a discriminação racial nunca foi a espinha dorsal de um folhetim ou o principal drama dos protagonistas.

Em foto colorida, um trio aparece dentro de um supermercado
Tony Ramos, Vilma Melo e Luis Miranda em 'Encantado's. - Divulgação/TV Globo

Numa prática que prossegue para além do período analisado por Araújo, o racismo nas novelas é sempre uma característica de um vilão e um problema individual de uma vítima, nunca um fenômeno social.

De um modo geral, constata Araújo, "os conflitos foram apresentados na perspectiva dos autores e dos diretores brancos, que, na sua maioria, só parecem conhecer a realidade e a cultura brasileira a partir de suas vivências na zona sul do Rio e de São Paulo".

Maior produtora de conteúdo audiovisual no país, a Globo tem uma responsabilidade grande neste processo. Já há muitos anos manifesta preocupação com o tema da diversidade em suas séries e novelas, mas a grande ficha, como diria a cartunista Laerte, só caiu em 2018.

Naquele ano, a principal novela da emissora, "Segundo Sol", ambientada em Salvador, tinha apenas protagonistas brancos e, entre os 26 principais personagens, somente três eram vividos por negros. Até o elenco reclamou com a direção da Globo sobre aquela "Bahia branca" que ia ao ar toda noite na TV.

Ainda em 2018, a Globo realizou, entre outras iniciativas, uma oficina de humor para roteiristas negros. Foi nesta oficina que nasceu o projeto de "Encantado’s", de Renata Andrade e Thais Pontes.

A comédia em 11 episódios, lançada agora em novembro na plataforma Globoplay, se passa inteiramente no bairro da zona norte do Rio que dá título à série —mais especificamente dentro de um supermercado, com esse mesmo nome. O elenco, vale destacar, é 90% negro e também há negros em postos chaves
da equipe técnica.

A afirmação racial em "Encantado’s" se dá menos por discussões sobre o tema e mais pela simples representação do elenco no ambiente em que se passa a história.

As autoras, de fato, fazem humor com algumas questões ligadas ao padrão estético e à fé dos personagens, mas a temática racial é muito mais subjacente do que explícita.

Com redação final de Chico Mattoso e Antonio Prata, "Encantado’s" é uma sitcom tradicional, que olha para os seus personagens com carinho, mas nunca deixa de rir deles.

Chama a atenção o fato de que todos os atores, e não apenas os protagonistas, têm espaço para muitos voos solos, e o rendimento é muito alto, bom demais mesmo.

A premissa básica de "Encantado’s" não é nova. A série "Superstore", exibida na TV aberta americana entre 2015 e 2021, e que está disponível no catálogo da Netflix, parte do mesmo ponto. Há até um episódio, sobre o fiscal incógnito, que se repete nas duas.

Mas a série brasileira, de fato, é um marco. Além das suas qualidades como comédia, é um manifesto bem-sucedido sobre diversidade. Este recado está dado.

Seria estimulante, agora, que a produção também fosse exibida na televisão aberta, levando-a a um público que possivelmente vai se identificar e se orgulhar com o que vê na tela.

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