O exercício de imaginar o pior futuro possível tem rendido farto material para a indústria do entretenimento, em especial para o cinema e a televisão. Provocar medo no espectador sempre foi uma aposta segura, ainda mais em tempos sombrios, como os atuais.
A distopia imaginada por Margaret Atwood em "O Conto da Aia" é um exemplo bem-acabado do potencial desse filão. Lançada em 2017 na TV, no formato de série, "The Handmaid's Tale" se tornou um fenômeno. Muito além do que a escritora vislumbrou, já está na quinta temporada.
O terror vivido em Gilead, porém, ainda que se passe num "futuro próximo", é claramente apresentado como uma situação ainda distante, longe do alcance do espectador.
Já "Vosso Reino" descreve um pesadelo que está batendo à porta. A série argentina se passa no tempo presente, num país presidido por um pastor neopentecostal, que pede a seus ministros que se deem as mãos e rezem antes das reuniões de governo.
A primeira temporada mostrou que o pastor Emilio, vivido por Diego Peretti, chegou ao poder graças à conjugação de interesses difusos, reunindo o empresariado do país, forças ocultas estrangeiras e líderes evangélicos.
Rubén Osorio (Joaquín Furriel), o obscuro assessor político que articula essa associação, enxerga a direita religiosa como um mal menor e, aparentemente, sob controle.
Na segunda temporada, que acaba de estrear (Netflix), Osorio se dá conta de que perdeu o controle da situação e vê a teocracia que ajudou a criar virar um trem desgovernado. "Este é o problema deste país: a camada de baixo não pensa e a de cima também não", lamenta seu assistente.
Desarticulado politicamente, o pastor Emilio aceita o apoio de um grupo de policiais e militares de extrema direita, da ativa e da reserva. Para eles, o Congresso "atrapalha". "Se as instituições não funcionam, devemos ajudar a consertá-las", diz o líder dos milicianos. Para dar exemplo, promovem ações de violência contra gays e defensores do aborto.
Embora Emilio seja a face mais visível da Igreja do Reino da Luz, é sua mulher, Elena (Mercedes Morán), quem comanda os negócios. "Tudo o que acontece na igreja afeta o governo, e vice-versa", ela explica a um assessor do presidente, cobrando a liberação de verbas.
Criada pelo cineasta Marcelo Piñeyro (de "Kamchatka" e "Plata Quemada") e pela roteirista Claudia Piñeiro, "Vosso Reino" é dessas séries imbuídas da missão de fazer um alerta. Não tem, por isso, a sutileza entre as suas maiores qualidades.
Curiosamente, na mesma semana, a Netflix também lançou a série documental "O Cerco de Waco", que descreve o conflito entre o FBI e os integrantes de uma seita comandada por um suposto messias, no Texas, durante 51 dias, em 1993. A ação terminou com a morte de quatro policiais e o suicídio coletivo de 76 membros do grupo, incluindo 25 crianças.
Com direção de Tiller Russell, a série conta com imagens impressionantes dos bastidores da ação. Elas mostram a falta de sintonia entre os agentes que buscavam negociar uma solução pacífica e os que apostavam no uso da força para resolver o impasse.
Também chama a atenção o fato de que os sobreviventes que falam no documentário parecem ainda acreditar em David Koresh. O líder messiânico tinha várias mulheres, algumas menores de idade, e mantinha armamento pesado no seu complexo.
Montado em ritmo de filme de ação, com apenas três episódios (outra qualidade), "O Cerco de Waco" parece assustadoramente atual.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.