Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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A ficção como arma de guerra

Minissérie 'Decadência', de Dias Gomes, ajuda a entender a fúria de Edir Macedo com a Globo

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A recente inclusão da minissérie "Decadência" no catálogo do Globoplay é um acontecimento para quem se interessa por teledramaturgia e pela obra de Dias Gomes. Não vi na época e não gostei muito de assisti-la agora, mas esse é um resgate de caráter histórico, que ajuda a entender melhor a espinhosa relação de Edir Macedo, proprietário da Record, com a Globo.

Exibida em 1995, em 12 capítulos, a minissérie descreve a trajetória de Mariel Batista, órfão de pai e mãe, criado por uma família rica, de quem se torna motorista. Já adulto, é enxotado de casa após ter um relacionamento com a filha do patrão.

Religioso, Mariel se desilude com a Igreja Católica e tem uma revelação após assistir a um culto numa igreja evangélica. Funda, então, a sua própria igreja, o Templo da Divina Chama, e se torna, em poucos anos, um fenômeno de popularidade.

Cena da minissérie 'Decadência', disponível no Globoplay
Cena da minissérie 'Decadência', disponível no Globoplay - Bazilio Calazans/Divulgação

Mariel usa ternos coloridos na igreja e defende o amor livre com as "tarefeiras" que o ajudam. É altamente sedutor e convincente na defesa do pagamento do dízimo. Logo adquire estações de rádio e, depois, um canal de televisão para impulsionar a igreja.

Inescrupuloso, manda matar um pastor dissidente, que conhecia seus golpes de lavagem de dinheiro. Conta com um lobista para ajudá-lo na intermediação de negócios ilegais e contrata uma garota de programa para destruir a reputação de um inimigo.

O centro da trama se passa em 1992. Em paralelo à história do pastor, Dias Gomes conta, em tom de melodrama rasgado, a saga da decadente família Tavares Branco, que abrigou Mariel quando criança. E, como pano de fundo, descreve o processo que conduzirá ao impeachment e à renúncia do então presidente Collor em dezembro.

Edir Macedo fundou a Igreja Universal do Reino de Deus em 1977 e chegou ao final dos anos 1980 como uma potência religiosa. Em 1989, adquiriu a TV Record, pagando US$ 45 milhões a Silvio Santos e à família Machado de Carvalho. O jornalismo da Globo contemplou o crescimento da igreja de Macedo com uma série de reportagens críticas. A mais famosas delas, no final de 1995, exibiu um vídeo que mostrava o religioso ensinando outros pastores a arrecadar dinheiro dos fiéis.

O dono da Record precisou ver apenas algumas chamadas, antes mesmo da estreia, para supor que Dias Gomes esculpiu Mariel buscando arruinar com a sua imagem. O autor de "Decadência" negou a inspiração, mas colocou frases ditas por Macedo, numa entrevista a Veja em 1990, na boca de Mariel numa cena em que conversa com um delegado de polícia.

A minissérie é baseada num romance do autor, publicado em 1994, com o título "Decadência, ou o procurador de Jesus Cristo" (Bertrand Brasil, fora de catálogo). As frases de Macedo a Veja também estão no romance, mas aparentemente ninguém reparou até a estreia da minissérie.

Pouco afeito a sutilezas, Dias Gomes faz Mariel ser preso ao final da minissérie, por charlatanismo, mas avisa ao espectador que ele foi solto dias depois. Macedo também foi preso em 1992, por 11 dias, sob a mesma acusação.

Às vésperas do impeachment de Collor, Mariel cogita convidar o presidente para o seu casamento, mas desiste diante da contrariedade da noiva. Macedo conta em "Nada a Perder", sua autobiografia, que tomou um café da manhã com Collor dias antes da renúncia do presidente. "Ele se disse indignado com a Rede Globo, que, de uma hora para a outra, deixara de apoiá-lo. Na ocasião, orei forte com as duas mãos na cabeça de Collor", escreve.

Como faz comumente no Globoplay, a empresa adverte o espectador que a trama, que está sendo exibida sem cortes, "pode conter representações negativas e estereótipos da época em que foi realizada". Contém mesmo.

Antes da estreia, em 1995, a Globo se deu conta de que avaliou mal o impacto de "Decadência". Edson Celulari, que vive Mariel, gravou uma mensagem avisando que a minissérie "não pretende fazer crítica a nenhuma religião em particular ou mesmo a qualquer um de seus representantes." Acredite se for capaz.

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