Descrição de chapéu Artes Cênicas

Dias Gomes faz cem anos em Brasil que repete 'Roque Santeiro' e 'O Bem-Amado'

Obras do dramaturgo censurado por Vargas e militares foram adaptadas para novelas e filmes que denunciam mazelas do país

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O dramaturgo Dias Gomes, em fotografia de setembro de 1980 Arquivo/Agência O Globo

São Paulo

Dias Gomes tinha mesmo que aprontar essa. Completar cem anos bem agora, no meio do segundo turno destas eleições que nem Sucupira teve igual.

Talvez as gerações mais novas não saibam, mas Sucupira é a cidade fictícia de "O Bem-Amado", umas das obras-primas de Gomes, consagrado dramaturgo e pilar da teledramaturgia brasileira, que tem seu centenário nesta quarta-feira.

 Odorico Paraguaçu, interpretado por Paulo Gracindo, no seriado 'O Bem-amado'
Odorico Paraguaçu, interpretado por Paulo Gracindo, na novela 'O Bem-Amado', de 1973 - TV Globo/Nelson di Rago

Inicialmente uma peça de teatro, escrita em 1962, "O Bem-Amado" foi adaptada para uma novela de TV, em 1973, e um seriado, exibido de 1980 a 1984, ambos na Globo e com grande sucesso de audiência.

Sucupira é governada por Odorico Paraguaçu, prefeito corrupto e sem escrúpulos, mas cheio de encantos, amado pelo povo. Com desvio de verbas e interesses eleitoreiros, ele constrói o primeiro cemitério da cidade, que tenta desesperadamente inaugurar para justificar os gastos, obviamente superfaturados, mas nunca consegue, porque ninguém morre naquele bendito lugar.

A trama surreal nos faz rir, até que percebemos que a tragicômica Sucupira dos mandos e desmandos de Odorico nada mais é do que a representação do Brasil.

A denúncia das mazelas e das injustiças sociais no país já havia se tornado marca da dramaturgia de Dias Gomes. A intolerância foi o tema de "O Pagador de Promessas", de 1959, que deu origem ao filme de mesmo nome, o único brasileiro a levar o principal prêmio do Festival de Cannes.

Com "A Invasão", de 1960, o autor jogou luz na falta de moradia, no desemprego e na fome. Em "A Revolução dos Beatos", de 1961, expôs a exploração política da fé. E, logo após retratar o autoritarismo e a corrupção em "O Bem-Amado", escreveria "O Berço do Herói", de 1963, sobre a crença em falsos mitos.

Vale repetir —Dias Gomes retratou um país intolerante, com problemas de moradia, desemprego e fome, políticos autoritários explorando a fé do povo, que acredita em falsos mitos. É ou não é uma ironia típica do autor ter o centenário celebrado neste Brasil de 2022?

Essa efeméride, aliás, já é subversiva desde a sua origem. O dramaturgo é do mesmo ano do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. O Partidão, como ficaria conhecido, foi criado em março de 1922, sete meses, portanto, antes do nascimento de Dias Gomes, com a intenção de promover no Brasil a revolução do proletariado, substituindo o capitalismo pelo socialismo.

O autor iria se filiar ao PCB aos 21 anos, em 1944, e passaria boa parte de sua vida seduzido por essa proposta, intercalando momentos de maior e de menor engajamento partidário, até a sua desfiliação, na década de 1970.

Essa relação com o partido faria de Dias Gomes um dos autores mais perseguidos pela censura, especialmente na ditadura militar. Antes mesmo de sua aproximação com os comunistas, porém, em peças escritas na juventude, já demonstrava o ímpeto de denunciar as desigualdades do país, e, com isso, consequentemente, descobriu cedo o que era ter a liberdade de expressão cerceada.

Sua estreia nos palcos se deu com um enredo que escreveu aos 19 anos, em 1942, "Pé de Cabra", sobre um ladrão filósofo que fala de hipocrisia e distribuição de renda. A peça só pôde ser montada por Procópio Ferreira depois de ter dez páginas cortadas pelo Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, que a considerou marxista. Dias Gomes jurava que, até então, nunca havia lido Marx. Mas, diante dessa acusação, ele resolveu ler.

A partir do golpe militar de 1964, o teatro de Dias Gomes seria, ano após ano, inviabilizado com seguidas proibições da censura e ameaças dos órgãos de repressão. Já célebre, especialmente a partir da premiação de "O Pagador de Promessas", de 1962, o autor era tratado nos relatórios secretos da ditadura como notório comunista, responsável por criações artísticas que representavam uma grave ameaça ao país.

Uma de suas obras, em especial, se tornou um marco da censura no Brasil. Em 1965, "O Berço do Herói" foi proibida na véspera da data marcada para o lançamento. Dez anos depois, em 1975, adaptada para uma telenovela com o nome de "Roque Santeiro", foi também vetada um dia antes do que seria a sua estreia. Um editorial foi lido no Jornal Nacional, escancarando, de forma inédita, a falta de liberdade de expressão no país.

A trajetória dessa obra, duplamente vetada, ilustra também a absorção de autores de esquerda pela televisão e a mudança de foco da censura ao longo da ditadura. Perseguidos no teatro nos primeiros anos do regime militar, os dramaturgos levariam seu olhar crítico para a crescente audiência da TV, que logo estaria no centro das preocupações dos censores. Às novelas, queridinhas dos telespectadores, eles dariam especial atenção, conferindo linha por linha dos roteiros.

Na primeira versão de 'Roque Santeiro', em 1975, Betty Faria e Lima Duarte faziam o papel da Viúva Porcina e Sinhozinho Malta.
Na primeira versão de 'Roque Santeiro', em 1975, Betty Faria e Lima Duarte faziam os papéis de Viúva Porcina e Sinhozinho Malta - Peter Schneider/TV Globo

Mesmo tolhidos pela censura e limitados pelos interesses econômicos das emissoras de televisão, Dias Gomes e sua mulher, a famosa roteirista Janete Clair, ao lado de outros grandes autores, construiriam uma teledramaturgia que, entre cenas cômicas e juras de amor, retratava criticamente a realidade nacional.

Dessa forma, aquele país da intolerância, da corrupção, do autoritarismo e da crença nos falsos mitos, em vez de permanecer restrito às plateias elitizadas do teatro, seria exposto ao público massificado da TV e entraria para o imaginário popular com uma força que nos leva a reconhecer, décadas depois, Sinhozinhos Maltas, Viúvas Porcinas e Odoricos da vida real, especialmente neste Brasil do centenário de Dias Gomes.

Um outro aspecto do autor, esse menos midiático do que o das críticas aos governantes, tem também muito a dizer sobre os dias de hoje —a sua coragem de questionar a esquerda e a si próprio como intelectuais de oposição.

Cena da minissérie 'O Pagador de Promessas', de 1988, com José Mayer e Denise Milfont - Divulgação

Ainda em 1969, no auge da repressão da ditadura, ele escreveu a peça "Amor em Campo Minado", na qual o protagonista é um militante comunista que, ao lado da mulher, está dentro de um apartamento, cercado pela polícia, e vive com ela uma explosão de estresse em que questiona o casamento e a militância.

A mulher pergunta se ele é um monstro. "Não, um intelectual apenas", diz o personagem. "Frequentemente indeciso entre morrer por uma nobre causa e viver pelos pequeninos e muitos prazeres de uma existência acomodada."

Proibida à época, a peça só pôde ser encenada em 1984 e se mostrou atual naquele momento em que a ditadura chegava ao fim e a esquerda se via abatida pela derrota das Diretas Já e excluída da transição negociada para a democracia.

Em seu centenário, Dias Gomes nos brinda com a atualidade de criticar Odoricos sem poupar os erros de seus adversários, aparecendo com desconcertante transparência nesse jogo, como resume uma declaração sua, numa entrevista durante a ditadura.

"Muitas vezes esperei que um dos meus filhos me olhasse nos olhos e dissesse ‘puxa, pai, vocês não podiam ter feito nada para evitar?’. Eu não saberia o que lhe responder. Talvez gaguejasse uma defesa. ‘É, filho, infelizmente nós nem acreditávamos que fosse possível chegar aos tempos sombrios a que hoje chegamos’."

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