Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mauro Calliari

Guaicuí, morte e vida de uma pequena grande rua em Pinheiros

Em São Paulo, o sucesso de um lugar pode ser o início de seus problemas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A rua Guaicuí é uma ruazinha de apenas um quarteirão no bairro de Pinheiros. De dia, oferece cenas quase bucólicas. Uma velhinha passa com seu carrinho de feira. Uma loja de material de limpeza expõe baldes e vassouras. Na frente da farmácia, um motoqueiro fuma com calma seu cigarro, enquanto um funcionário varre a calçada. Uma cabelereira espera na porta pelas clientes, aproveitando a sombra gostosa de uma árvore.

Ao final da tarde, os bares colocam mesas na calçada e os clientes vem chegando para o que promete ser um happy hour agradável. Mais tarde, porém, começa a metamorfose. As dezenas de pessoas se tornam centenas ao longo da noite. Quando os bares fecham, são milhares. É a hora em que os vendedores tomam conta da rua, oferecendo Skol Beats, cerveja, Corote e Catuaba. O som altíssimo jorra de caixas de som carregadas por homens numa espécie de mochila. A multidão toma as ruas adjacentes. Nas casas e prédios ao lado, é impossível dormir. Ver TV ou falar no telefone só com as janelas fechadas. De manhazinha, o dono da banca de jornal encontra um rio de xixi e uma pilha de garrafas quebradas. De quinta a domingo, o ritual da rua se repete.

Bares na rua Guaicuí, em Pinheiros, ficam lotados no primeiro dia de extensão de horário de funcionamento - Eduardo Knapp - 9.jul.2021/Folhapress

A pequena saga de uma pequena rua em São Paulo é simbólica. No Plano Diretor, queremos adensamento e uso misto ao longo dos eixos de transporte. Na prática, porém, a convivência entre residências, escritórios, comércio e bares tem se mostrado bem mais difícil.

Tenho saudado a reapropriação do espaço público em São Paulo nessa coluna e em outros trabalhos há anos. É muito bom ver gente na rua, nos parques, no centro, na Paulista e nos bairros, caminhando pelas calçadas e, por que não, sentadas nas mesas de bares. Mas uma situação como essa parece esconder uma escala com a qual não sabemos lidar: quando o uso do espaço público se torna tão intenso que passa a gerar o efeito oposto, o da privatização pela multidão. O presidente da Associação dos Moradores de Pinheiros, o arquiteto George Frug Hochheimer, defende o uso do espaço público e os princípios do Plano Diretor, mas estabelece uma linha de corte –quando o espaço público deixa de ser inclusivo e passa a ser excludente. É possível que isso já tenha acontecido.

O caso enseja duas reflexões. A primeira é como é fácil transformar um espaço urbano banal em algo interessante. A Operação Urbana Faria Lima, apesar de usar o dinheiro em túneis, reformas pouco inspiradas no largo da Batata e pouco desenho urbano, conseguiu, na Guaicuí, uma pequena vitória: calçadas generosas, árvores e a preservação daquelas casinhas simpáticas de dois andares. Com menos carros, próxima do metrô e espaço agradável, está dada a base para que uma rua atraia pessoas e comércio.

O segundo aspecto é o da nossa incapacidade em resolver conflitos na cidade. Qual é a base comum para o uso do espaço público?

Com uma sociedade tão desigual, difícil contar com um código comum de comportamento. Na ausência desse, talvez tenha faltado um acordo tácito entre os comerciantes anos atrás para garantir que a rua não se indispusesse com os moradores. Depois que o Pitico, um estabelecimento simpático com cara de casa de praia e música baixa, estabeleceu um certo padrão de civilidade em 2015 e atraiu visitantes e moradores do entorno, a rua viu, a partir de 2017, um boom de bares. Muitos deles colocam música em volume altíssimo, numa cacofonia mal-humorada.

Quanto à fiscalização, a Prefeitura explica em nota que a Subprefeitura de Pinheiros faz visitas semanais para coibir a venda de produtos ilegais. O PSIU fiscaliza estabelecimentos, mas não mexe com o barulho da rua e carece de agilidade –às vezes, a vistoria acontece no dia seguinte à reclamação. A polícia e a GCM dão suporte às ações. É comum ver viaturas estacionadas nas extremidades da rua, mas quando saem, tudo volta ao normal. A violência, impulsionada pela ilegalidade, aumentou. Duas mortes em madrugadas foram reportadas nos últimos meses.

No fundo, não temos mediação dos conflitos. Existem órgãos para isso, como o Conselho Participativo e o Conselho de Segurança, o CONSEG, que reúne polícia, subprefeitura, comerciantes e moradores. Como no Carnaval, esses conselhos poderiam ser usados para lidar com problemas comuns.

O que pode acontecer agora tem a ver com a cidade que queremos. Sem um código comum de comportamento, com pouca fiscalização e mediação entre os atores, é difícil imaginar um futuro radiante. Uma das variáveis que pode mudar completamente a situação é a vinda de um fundo de investimentos, o Jacarandá, que já comprou dezenas de imóveis ao redor do largo da Batata. O projeto tem o poder de transformar a região, mas resta saber como será a interação entre os interesses privados e os públicos.

A incapacidade de lidar com as questões do uso do espaço público em São Paulo coloca em xeque a própria diversidade, que é um dos maiores ativos da cidade.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.