Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

Mulheres que caminham pela cidade

Livro inspira a pensar sobre as dificuldades e os prazeres que as mulheres têm ao sair às ruas

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Cidades sempre foram ambientes difíceis para mulheres. Na Londres do início do século XIX dizia-se que apenas prostitutas andavam pelas ruas de noite. São Paulo nesse mesmo período ainda tinha muxarabis nas janelas para evitar que as mulheres das famílias patriarcais fossem vistas da rua. Já nas primeiras décadas do século XX, a mãe da escritora Zelia Gattai tinha que levar as filhas em seus passeios pela rua Direita para não ser vista andando sozinha.

Saiu um livro simpático sobre as mulheres que caminham, "Flâneuse". Se a figura do flâneur é historicamente associada ao homem, Lauren Elkin vai atrás do ponto de vista feminino. São escritoras, artistas, ativistas, trabalhadoras ou turistas que exploram cidades e exercitam sua liberdade de escolher trajetos ou se perder pelas ruas.

Um grupo de seis mulheres agasalhadas caminham pela Avenida Paulista, em São Paulo. Elas não estão acompanhadas, mas andam todas na mesma direção.
Mulheres agasalhadas caminham pela Avenida Paulista, na zona central de São Paulo - Caio Guatelli - 31.jul.2011/Folha Imagem

Para a americana que cresceu no subúrbio rico, o fascínio pelo caminhar se dá, claro, em Paris. É lá que ela começa a pensar sobre a importância da rua e a pesquisar sobre as histórias de mulheres que caminham.

Em Londres o destaque só podia ser Virgínia Woolf, que é tida por muitos como uma das primeiras flâneuses dignas do nome. O trecho do livro "Mrs. Dalloway" em que ela caminha pela cidade é tão notório que há até tours que tentam seguir o roteiro do livro e que incluem o cálculo do tempo entre uma badalada do Big Ben e outra...

O capítulo sobre Tóquio é uma bonita história de amor entre a mulher, um homem e uma cidade que inicialmente repele mas que vai sendo descoberta aos poucos, vagarosa e dolorosamente. Em Veneza, provavelmente a melhor cidade do mundo para os pedestres, o mote é a desordem do traçado das ruas minúsculas. Quem surge na história é a artista Sophie Calle, que decide perseguir obsessivamente um desconhecido por dias. O homem termina por desconfiar da misteriosa perseguição, ela talvez tenha se apaixonado por ele e a história rendeu uma obra artística divertida.

Saindo da brincadeira individual para a revolução coletiva, vem a catarse de Paris. Desde a revolução de 1789 até as passeatas de 1968, os parisienses —e as parisienses— marcham para mudar governos ou protestar contra mudanças na educação.

Pode ser que entre as incumbências que o barão Haussmann tenha recebido de Napoleão 3º tenha constado a ordem de ampliar as ruas para impedir barricadas. O fato é que, mesmo depois das grandes reformas e dos grandes bulevares, os franceses continuaram protestando e marchando, e as mulheres tiveram participação intensa nos protestos.

Uma delas foi a escritora George Sand, que começa a se vestir de homem. O ato revela uma intenção prática: é muito mais fácil caminhar pelas ruas sem as pesadas roupas das mulheres da época, mas é mais que isso. As roupas de homem permitem que Sand saía às ruas sem ser importunada, invisível: "Ninguém me dava atenção, ninguém adivinhava meu disfarce... Ninguém me conhecia, ninguém me olhava, ninguém me criticava. Eu era um átomo perdido naquela imensa multidão".

Ora, essa é a matéria-prima do flâneur, o prazer do anonimato, que permite a Baudelaire perder-se na multidão.

Assim, andar na rua, que seria o ato mais banal de uma vida cotidiana, ganha transcendência. Poder sair de casa e ir ao trabalho, parar num café ou vaguear pelas lojas sem ser importunada, sem medo, em segurança, passa a ser uma condição básica das cidades.

O livro não fala das cidades que não sejam dos países ricos.

Em São Paulo, as mulheres saem às ruas em seu dia a dia, mas estão sempre em alerta. Escrevo essa coluna de Montevideo; nesses últimos dias não vi nenhuma mulher aparentando medo de estar na rua, num ponto de ônibus, em lugares vazios, com celular na mão, nem de andar sozinha numa calçada tarde da noite. É uma diferença considerável e um parâmetro que deveríamos estar buscando obstinadamente.

O livro das mulheres brasileiras que caminham confiantes, que se permitem vaguear, fazer arte, buscar inspiração, ou não pensar em nada em seus passeios ainda está por ser escrito.

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