Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

Todos os 34 barulhos de um dia normal em São Paulo

Levantamento informal de meu DataBarulho confirmou o poder da poluição sonora

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O dia começa com um barulhinho bom, o som do jornal sendo jogado na porta de casa. Às vezes, o paf vira plaft quando está chovendo e o valoroso Auro, o dono da banca aqui pertinho, coloca um saco plástico.

Às 6 da manhã acaba o lirismo. É a hora do primeiro avião do dia, na rota de aproximação para Congonhas. Em alguns horários, eles passarão a cada um minuto e meio, trazendo executivos, turistas, comerciantes e uma cortina de barulho.

Avião decola no aeroporto de Congonhas, em São Paulo - Rivaldo Gomes - 10.dez.22/Folhapress

Às 7h a vizinha ao lado liga o rádio com as notícias. O som entra por baixo da porta da cozinha como um sussurro.

A partir das 8h os estudiosos alunos da Etec em frente jogam vôlei. Os jogos se sucedem até a hora do almoço, com cânticos e xingamentos de uma torcida animada e fiel. Em dias de campeonato surge um juiz e o apito se eleva acima de todos, agudo, repetitivo e inútil.

Às 9h o trânsito começa a jogar suas ondas de barulho. O caminhão de concreto tem um som pesado, a moto tem um som cortante, a van tem um som oco e todas as buzinas doem no ouvido.

Às 11h já identifiquei a buzina estridente do Honda Fit, a buzina irritada da motocicleta, a buzina festiva de um motorista que encontrou alguém na calçada e a buzina quase infantil (ring! ring!) do ciclista do supermercado do bairro que vem na contramão para entregar a compra de alguém.

Um pouco antes das 12h, o jardineiro começa a aparar a grama do prédio ao lado, uma mistura de lâmina, corte e motores afiados.

Às 12h30, uma freada. Um homem grita bem alto: "para de olhar o celular e dirige direito, vai tomar no c.!". Mais buzinas.

Às 13h a van do Sedex dá uma ré e emite uma sirene (pi-pi-pi) que dura dois minutos até o motorista conseguir fazer a baliza.

Às 15h, pontualmente, no apartamento de cima, começa a varrição. Terças e sextas, aprendi, são dias de passar o aspirador, demorada e meticulosamente.

Momentos depois, uma brevíssima interrupção na luz dispara o gerador do prédio. Serão mais duas horas até o monstro se calar. Dentro de casa, a impressora religa sozinha, recarrega e se dispõe a imprimir algum hipotético e inexistente documento importante.

Às 16h um caminhão dá uma buzinada de 20 segundos, furibunda, vulcânica, interminável. Sinto o quarteirão inteiro parar de respirar. Interrompo uma aula online, peço desculpas e tento pegar o ritmo –e o fôlego— de volta.

Depois das 17h há uma breve pausa poética. Crianças brincam no térreo do prédio, as vozinhas trazem alegria, mas duram pouco, até vozes mais graves e cheias de certeza começarem a gritar para o banho e o jantar.

Às 18h os cachorros de toda a vizinhança latem em conjunto. É a hora preferida de levar os pets para fazer suas necessidades e a reação sonora aos passeios é latida e doída.

É nesse horário, durante os dias mais vazios da pandemia, que eu conseguia ouvir o lindo e melancólico sino da igreja. Agora ele sumiu, abafado por um tapete de ruído grave e permanente.

Às 19h surgem as motocicletas do delivery, trazendo pizzas, hambúrguers e comida japonesa para os apartamentos 12, 132 e 61, respectivamente. As motos têm escapamentos abertos, o som parece uma unha pontiaguda cutucando o ouvido. Bem diferente daquela Harley Davidson, que circula uma vez por dia, que parece uma mão inteira socando o tímpano.

De repente, um alarme: "Atenção, este veículo está sendo roubado!". O som dura dois minutos e para. Ouço mais um motor saindo em disparada, dessa vez na contramão.

Às 19h10 irrompe o caminhão de lixo, um cometa vagaroso precedido por homens que correm e empilham sacos e secundado por um séquito de carros e motos que buzinam indiferentes ao esforço dos valentes coletores de lixo.

Às 23h passa o último avião. O silêncio chega a doer de tão bom, mas dura pouco.

Logo em seguida vem o caminhão da caçamba, rangendo suas correntes pesadas que batem no ferro retorcido para recolher os restos de mais uma reforma na cozinha de alguém. Vidros e azulejos quebrados batem e se esfarelam. Dois ou três moradores aparecem nas janelas, esperando a hora de voltar às TVs que emitem luz esbranquiçadas.

À meia-noite três amigos passam pela rua, conversando aos berros; dá para distinguir as palavras, ouço o nome de mulher, Amanda —quem será?—, que se repete duas vezes antes das risadas.

A noite não acabou. A madrugada é o território dos bares. Eles estão a mais de dois quarteirões de distância, mas a música alta chega desimpedida.

Às três da manhã um carro de vidros escuros faz sacudir o vidro, que treme ao som de um funk metálico e distorcido. Ele passa bem devagar, como se buscasse confirmar o efeito de seu desfile auditivo.

Às 4h30 o último barulho antes do novo dia. Ao longe um caminhão pesado muda de marcha –PFFFFIUU!– para garantir que todos estejam acordados.

A poluição sonora é a segunda maior causa de problemas de saúde nas cidades, logo depois da poluição do ar, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Um estudo feito em Paris calculou que o barulho pode ser responsável pela perda de até 10,7 meses de vida.

A cidade de Mumbai, provavelmente a mais barulhenta do mundo, decretou um dia sem buzina por semana.

A União Europeia começou a obrigar as grandes cidades a produzir um mapa de barulho e mitigar as grandes fontes de emissão.

Em São Paulo, por enquanto, sinal verde para a poluição sonora.

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