Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Plano Diretor chega à mesa do bar e explicita confusão entre densidade e verticalização

Despropositado, substitutivo da Câmara gera reação inédita por uma cidade menos ruim

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A revisão era um procedimento que constava da lei que implantou o Plano Diretor, nove anos atrás. A ideia era fazer um diagnóstico, manter o que funcionou e mudar o que não funcionou. A atual gestão da Prefeitura de São Paulo ficou no meio do caminho, mexeu em algumas coisas e mandou uma proposta sem muita inspiração para a Câmara Municipal.

Mas, quando o negócio caiu na Câmara, tudo saiu do controle. O vereador Rodrigo Goulart divulgou um substitutivo que parece ter sido escrito pelas mãos do setor imobiliário. Mais verticalização. Menos restrições para construções. Permissão para acabar com vilas. Uso do dinheiro do Fundurb para asfalto. Fim das restrições nos miolos de quadra. Incentivos para vagas de garagem. Pouco ou nada sobre a qualidade de vida na cidade, habitação, espaços públicos, o transporte, as premissas, as taxas de crescimento, as grandes áreas de desenvolvimento.

A reação veio forte na última semana. Foram debates, reclamações, entrevistas, plenário da Câmara cheio. Num gesto de rara civilidade para com sua cidade, o próprio ministro Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e responsável pela promulgação do plano de 2014, passou um fim de semana ligando para gente que poderia trazer bom senso à discussão.

Pela primeira vez, o assunto saiu dos gabinetes e chegou às conversas cotidianas, à mesa do bar. Os possíveis efeitos deletérios da lei passaram a ser descritos, avaliados, temidos. Ninguém lembrava em quem tinha votado nas últimas eleições, mas de repente os 55 vereadores ganharam nomes, rostos e, com o fim da proteção do anonimato, um possível medo do resultado das próximas eleições. Como resposta, a Câmara vai acabar suavizando algumas das propostas mais polêmicas, mas, no final, terá piorado o que já existe, sacramentando sem questionar o modelo de verticalizar sem pensar na qualidade urbana.

Se aprovada, a revisão abre caminho para o zoneamento. E, se o Plano Diretor já afastava os leigos, nas discussões do zoneamento, as siglas, as minúcias, as entrelinhas, tudo contribui para um debate desigual, em que o lado que tem advogados e especialistas sempre ganha do lado que tenta entender o que está escrito.

É pena que a mobilização tenha surgido tão tarde. O Plano Diretor, com seus sete princípios, 14 diretrizes, 17 objetivos e 248 páginas, nunca fez parte do cotidiano das pessoas. Mas suas consequências, sim, moldam como esse cotidiano vai ser. E só quando se conversa sobre isso se entende que dava para ser diferente.

Daria para brigar, como tentamos alguns membros do Conselho de Política Urbana, para que ele obrigasse a confecção de Planos de Bairro antes do zoneamento, que entendesse as particularidades de cada lugar antes de implantar a verticalização com olhos fechados. Rios, nascentes, morros, tecido urbano, tudo seria levado em consideração para decidir sobre a inserção das novas edificações, acompanhadas de um plano de espaços públicos: calçadas, praças, ponto de ônibus, postos de saúde, creches etc.

Também daria para termos resolvido tempos atrás a grande deficiência do plano: a confusão entre densidade e verticalização. Verticalizar não é a única forma de aumentar a densidade. Paris tem densidade muito maior que São Paulo mesmo com gabarito máximo de 6 a 8 andares. Curitiba tem prédios baixos longe dos eixos que contribuem para a densidade sem agredir o entorno.

Vista de cidade, com céu azul
Vista de Paris de um balão de passeio - Lúcia Müzell/RFI

Em São Paulo, os simpáticos predinhos construídos nas décadas de 50 e 60, com uso misto e três ou quatro andares e que estão na mira dos construtores, oferecem densidade com qualidade, o que os novos prédios não estão fazendo. Seria possível pensar em mudanças menos radicais no tecido urbano atual, como as que acontecem em alguns eixos das zonas residenciais, em que se divide uma casa grande e vazia em quatro ou seis pequenas unidades, mantendo a mesma área construída.

É pena mesmo que o assunto tenha demorado a ser entendido e concretizado. A deliberada confusão das leis talvez seja parte da nossa herança jurídica. Mas, pensando bem, talvez seja apenas parte de uma estratégia de manter as pessoas longe da conversa, até que elas se vejam rodeadas por uma cidade que não entendem e que suprime um pouquinho do futuro com que sonhavam.

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