Por dever de ofício e interesse, tenho ido a dezenas de audiências públicas nos últimos anos. É um programa imperdível para entender a variedade de pontos de vista sobre a cidade.
Na semana passada, fui a um desses encontros, no bairro da Liberdade, para discutir a proposta da Prefeitura de São Paulo de fechar cinco ruas do bairro aos domingos.
A ideia é sensata e está alinhada com o que se faz no mundo todo —ou na própria avenida Paulista. Aos domingos, o bairro fica lotado de pessoas que tomam as calçadas, a faixa verde e até o asfalto. Uma pesquisa mediu isso. Em todos os horários, há um predomínio absoluto de pedestres sobre o número de automóveis. Com algumas reformas, dá para criar um espaço contínuo e agradável, livre de carros.
A questão é a maneira como são discutidos os projetos. Como é de praxe nas audiências, após a apresentação do técnico da Secretaria de Urbanismo, as pessoas se inscrevem para fazer seus comentários.
O tom começa alto. Uma mulher reclama aos brados do limite de três minutos para falar. Alguns moradores questionam a falta de informação sobre os acessos aos prédios. A síndica de um prédio acusa a prefeitura de omissão na zeladoria e na segurança. Palmas entusiasmadas.
Um comerciante é taxativo: "somos contra!". Outros querem saber como entregar mercadorias ou sobre o estacionamento para os clientes, ignorando a pesquisa apresentada antes que mostra que a esmagadora maioria das pessoas não chega de carro e sim de transporte público. Aliás, há pesquisas aos montes que mostram que o comércio se beneficia com o trânsito de pedestres, mas ninguém lembrou de apresentar.
Fala o representante dos ambulantes. Ele se coloca ao lado dos comerciantes, mas não parece gozar de seu apoio. Sua argumentação vai direto ao ponto: o dinheiro. "Nós também fazemos parte do capital de giro de São Paulo; não queremos ser excluídos da decisão."
Alguém pede a palavra e aponta o dedo para o palco: "Onde está o subprefeito?". Silêncio. É uma queixa comum nas audiências públicas e reuniões de conselhos. Na falta do chefe, o representante sofre com as cobranças, mas não tem autoridade para tomar decisões.
De volta às perguntas, a representante de um hospital quer saber como será o acesso das ambulâncias aos domingos. A resposta a satisfaz.
Um homem de voz calma toca no assunto da herança afro-brasileira. Quem, afinal, decidiu mudar o nome da praça Liberdade para "Japão-Liberdade"? Mesmo que o nome da praça já tenha sido mudado em junho para "Liberdade África-Japão", a fala é recebida com palmas vigorosas.
Uma moça conta que a Capela da Nossa Senhora dos Aflitos fica numa rua sem coleta de lixo. Para piorar, a entrada da capela se transforma num banheiro público aos domingos. O representante da subprefeitura da Sé se dispõe a mudar o tipo do caminhão de lixo para caber na rua, mas cala sobre os banheiros. Palmas tímidas.
Depois de horas desse banho de participação política, alguém pode perguntar: será que não dá para melhorar isso?
Claro que dá.
Para começar, as apresentações que os técnicos da prefeitura fazem poderiam ser mais enfáticas no diagnóstico, empáticas na forma e informativas no conteúdo: prazos, impactos, custo. Também não custaria usar imagens realistas (e não os croquis que mostram cenas bucólicas, possíveis apenas numa cidade canadense ou dinamarquesa).
Faz falta também a presença de um representante do poder público com autoridade para mexer no projeto e compromisso para acompanhar o assunto.
A própria estrutura da audiência pública é arcaica e precisa mudar —com mais votações digitais de opções de projetos, mais celeridade para encaminhar temas não relacionados para outras instâncias, mais disciplina para acompanhar projetos e mais engajamento para as apresentações.
O ponto mais importante, porém, tem a ver com o que me parece ser uma desconfiança básica com relação à prefeitura, que se reflete na já exagerada carga de agressividade dos discursos. Quando há falta de manutenção, limpeza e segurança, as pessoas desconfiam de qualquer projeto. Está na cara que a instância criada justamente para discutir questões locais, os conselhos participativos de cada subprefeitura, não estão funcionando e o poder público está devendo no dia a dia.
Também faz falta a presença do Legislativo. O ideal seria termos um vereador em cada região —o voto distrital, mas pouca gente parece ter interesse em tocar essa discussão.
Bem, e o projeto? Com alguns ajustes, pode ficar ótimo. A Liberdade é um dos lugares mais gostosos de São Paulo, pela comida, pelas lojas, mas principalmente pela vitalidade das ruas. Com melhoria no piso, nos equipamentos e nas calçadas, dá para criar um espaço público bem mais agradável.
Basta ouvir o que as pessoas falaram, ajustar o projeto para atender os acessos essenciais, cuidar do básico e começar uma conversa que continue até depois da implementação do projeto, ajustando e consertando o que está errado. O conflito faz parte da vida em cidades, mas ajuda muito se a gente falar a mesma língua.
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