Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Vai acontecer de novo

As contradições das cidades brasileiras geram pouca predisposição e incentivos para lidar com o clima

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Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

A catástrofe do Rio Grande do Sul fez o país parar. Mas talvez não faça o país se mover com a velocidade e consistência que precisa.

O governo federal está refazendo seu plano para emergências climáticas, mas é nas cidades que os projetos se concretizam ou não. Os melhores exemplos no mundo são de lugares onde há uma ação decisiva que junta pessoas e poder público. O paralelo com as cidades brasileiras não é animador, em parte por causa de nossas próprias contradições.

Carlos Macedo/Folhapress
Moradores do bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre, enfrentam cenário de destruição e buscam a reconstrução depois da enchente. Com o rompimento do dique, as ruas e as casas viraram restos de lama e entulhos. - Carlos Macedo/Carlos Macedo/Folhapress

A contradição cultural

No país com a maior biodiversidade do mundo, nossas cidades ainda enterram e retificam rios, pavimentam as várzeas e mantêm uma luta constante contra o verde. Assistimos ao aumento da frota de carros e motos com combustível fóssil e não vemos nenhuma disposição de lidar com nossos resíduos.

Mudar esses comportamentos não parece estar na pauta. Se um prefeito resolver instituir controle de emissões para os veículos, reduzir o uso de transporte individual ou até orientar cidadãos a separar orgânicos para compostagem, provavelmente vai enterrar seu futuro político.

A contradição orçamentária

Como garantir que as rubricas "ações de mitigação de emergências climáticas", ou "investimentos necessários no futuro" não sejam sistematicamente esquecidas no orçamento?

Tomemos o caso de Porto Alegre. Gastos básicos em manutenção de equipamentos essenciais não foram realizados, aparentemente sem muita oposição. O fato é que há um incentivo para investimentos vistosos e não para a zeladoria. A ponte, o posto de saúde e a escola são necessários, e muito mais visíveis, que a manutenção de uma bomba. Só que a reconstrução vai custar vinte vezes mais do que custariam os reparos no sistema de proteção.

Os Países Baixos conseguem manter seu sistema de defesa hídrica funcionando há centenas de anos. Não consta que vereadores de Amsterdam tenham questionado os gastos na manutenção de diques e bombas.

A contradição administrativa

A esmagadora maioria dos municípios brasileiros não tem recursos para lidar com o futuro. Como a esfera federal é a responsável pelas políticas, a esfera estadual vai ter que se reorganizar administrativamente para implementá-las. Falta coordenação de transporte, energia e água nas regiões metropolitanas, mas, nas cidades menores, vai ser preciso pensar em modelos mais ágeis, como consórcios de municípios que dividam a mesma bacia hidrográfica.

A contradição dos prazos

Os poucos planos existentes para lidar com as mudanças climáticas sofrem com a contradição entre o horizonte de um mandato, 4 ou 8 anos, e o horizonte das metas, de 30 anos.

Isso acontece em qualquer esfera. O PlanClima de São Paulo, por exemplo, foi concebido em 2018. Trata-se de um calhamaço de 344 páginas, cada uma com metas e submetas. Se fosse cumprido, haveria uma chance razoável de reduzir emissões até 2050.

A contradição é a seguinte: só é possível a cidade cumprir o compromisso de longo prazo se cada gestão andar decididamente na sua direção, mas no cálculo de curto prazo, sujeito a eleições e acordos, há um desincentivo à ação que não tenha retorno imediato. Resultado: a cada meta não cumprida, nós ficamos mais longe dos objetivos de 2050. A cidade andou no investimento contra enchentes e criou a secretaria de mudanças climáticas, mas ainda está longe de metas de eletrificação da frota de ônibus, mudança nos modais de transporte, eficiência energética e coleta seletiva, por exemplo.

Vai acontecer de novo

Contemporaneamente, o modelo atual de ocupação do espaço dá sinais de colapso em toda parte, entre risco de inundação e falta d'água. Jacarta está afundando pelo uso intensivo dos lençóis freáticos. Paquistão e Índia brigam por água. Cidades ricas como Phoenix, Dubai e Singapura só se mantêm viáveis graças ao uso extensivo de ar condicionado. Na Alemanha, mesmo preparadas, cidades à beira do Danúbio estão convivendo com mais e mais inundações.

Um novo livro, "Age of The City", de Ian Golding e Tom Lee -Devlin, coloca grande parte da responsabilidade por um futuro menos catastrófico nas próprias cidades. Algumas investem em infraestruturas pesadas, como Miami, que está montando um enorme sistema de muros e bombas, os "sea walls" para se proteger contra o aumento do nível dos oceanos, ou Shangai que construiu 120 milhas de diques e muros. Muitas cidades estão investindo capital político na substituição de automóveis (300 gramas de emissão por pessoa por km) por transporte público (65 gramas) ou à pé e bicicleta (zero gramas de emissão).

Há também estratégias de mais baixo custo sendo implantadas em grande escala, como os SbN –sistemas baseados na natureza. Os jardins de chuva vão desde pequenas áreas de drenagem nas calçadas até as ‘sponge cites’, ou cidades esponja, como na China.

Mesmo não sendo substitutos às grandes estruturas, de um modo geral, mais árvores, áreas verdes, várzeas, mangues e hortas aumentam a permeabilização, diminuem a temperatura e aumentam a resiliência da cidade. A preservação dos ecossistemas naturais é um bom começo e nós ainda estamos lutando com isso.

No painel promovido pela Folha em 3 de junho, especialistas foram unânimes: "Vai acontecer de novo". O tempo de se informar sobre as mudanças climáticas passou. Corremos o risco de ter perdido o tempo de agir.

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