Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

O poder dos monstros

Será que os brasileiros que apoiam e se identificam com psicopatas genocidas já se perguntaram se são um monstro?

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No dia 1º de fevereiro de 1977, Clarice Lispector deu a sua última entrevista: "Eu acho que quando não escrevo estou morta... Sei lá, estou meio cansada. De mim mesma... Bom, agora eu morri, mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo".

No dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos, Clarice morreu em decorrência de um câncer de ovário.

Por que Clarice agora?

Clarice, sentada, com um grande colar, olha por cima do ombro
Clarice em entrevista para a TVE, em 1976 - Reprodução

"Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento", ela diria.

Talvez porque ela nasceu na Ucrânia, minha mãe na Polônia e meu pai na Romênia: no meu sangue, alma e coração corre o mesmo desespero, trauma e pânico dos judeus que vieram para o Brasil fugindo dos nazistas e fascistas.

Imersa em Clarice, encontrei uma pequena epifania: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro".

Será que são os meus defeitos que estão sustentando o edifício inteiro?

Lembrei-me então de um episódio marcante da minha vida. No dia 23 de julho de 1990 lancei o livro "A Outra: um estudo antropológico sobre a identidade da amante do homem casado". A Casa de Cultura Laura Alvim, na praia de Ipanema, estava abarrotada de amigos, alunos, professores e leitores. Poderia ter sido um dos momentos mais felizes de toda a minha vida, mas não foi.

Estava assinando carinhosamente cada livro, quando vi, na fila de mais de 500 pessoas, um professor que estava evidentemente chateado com alguma coisa.

No resto da noite não consegui enxergar mais nada: "Por que ele está tão chateado? Será que não gostou do livro ou da matéria que saiu no jornal? O que será que eu fiz de errado?".

Passei a noite inteira tentando adivinhar o que eu havia feito para ele estar tão chateado. Com certeza a culpa era minha.

Na semana seguinte, encontrei o professor no Museu Nacional, onde eu fazia meu doutorado. Perguntei: "Por que você estava chateado no meu lançamento?".

"Mirian, não me lembro, não tenho a mínima ideia. Vai ver que era porque minha mulher não quis ir comigo."

Moral da história: em um dos momentos mais importantes da minha vida eu coloquei todo o meu foco na única coisa negativa que aconteceu no lançamento e apaguei todo o resto. E ainda me culpei por um erro que eu tinha a certeza de ter cometido.

Por que lembrar de um caso tão minúsculo em um momento de tanto terror?

Porque, como Clarice, tenho "medos bobos e coragens absurdas". Porque, como Clarice, "tenho sido a maior dificuldade no meu caminho", mas estou descobrindo que foi o "apesar de" que me provocou "uma angústia que insatisfeita foi a criadora da minha própria vida".

Em pânico com essa guerra insana, sinto a mesma angústia de Clarice: "Eu escrevo para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria vida".

Escrevo obsessivamente na busca de superar os meus próprios obstáculos e defeitos, na tentativa de corrigir os erros que eu cometi na minha ânsia de acertar sempre e, principalmente, na procura de encontrar algum sentido para a minha vida. Posso ficar sem dormir ou comer, mas, desde os meus 16 anos, não vivi um só dia sem escrever. Escrever não é apenas o que eu faço: é o que eu sou.

Mas o que escrever quando tudo já foi dito ou é indizível? Como disse Clarice, é pouco, é muito pouco.

"O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha?... Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco".

Procuro respostas nas perguntas de Clarice: "Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?".

Será que os brasileiros que apoiam, defendem e se identificam com psicopatas genocidas já se perguntaram: "Sou um monstro?". Será que conseguem perceber que dizer que são monstros é pouco, é muito pouco?

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