Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo

Como transformar a tristeza em beleza?

São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer

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Sou muito convidada para dar palestras e entrevistas sobre "a curva da felicidade" desde que o meu TEDx "A invenção de uma bela velhice" viralizou no YouTube. Mas, ultimamente, não estou conseguindo falar sobre felicidade. Na verdade, bem antes da pandemia já achava difícil falar sobre felicidade.

Em 2019, tive um grave problema de saúde e consultei seis médicos. Todos receitaram antidepressivos. Não tomei o medicamento, pois achava que, depois de 21 anos de análise e da leitura compulsiva de livros de psicologia e filosofia, já tinha as ferramentas necessárias para lidar com meus traumas, pânicos e ansiedades.

Quando minha mãe teve câncer, e sofreu por mais de dois anos, escrever foi a única maneira que encontrei para ter força e coragem para cuidar dela. No dia em que ela morreu, liguei para o antropólogo Gilberto Velho para avisar que não iria conseguir entregar o trabalho final do seu curso no meu doutoramento no Museu Nacional. Ele me deu mais um mês de prazo. Eu chorava desesperadamente e me perguntava: "Como vou conseguir sobreviver sem a única pessoa que cuidou de mim?"

A colunista Mirian Goldenberg olhando pela janela
Escrever é o único jeito que encontrei de tentar transformar a minha dor em beleza - Arquivo Pessoal

Foi assim que nasceu "A Outra: Um Estudo Antropológico Sobre a Identidade da Amante do Homem Casado". O livro foi um grande sucesso em 1990, ficando na lista dos mais vendidos do Brasil. Gilberto Velho adorou o trabalho e me aconselhou a publicá-lo como livro. Mas ele sugeriu que eu cortasse a introdução, na qual eu contava que minha mãe acreditava que havia ficado doente por ter descoberto que meu pai tinha uma amante, sua secretária, há mais de 20 anos. Na dedicatória escrevi: "Para minha mãe, com saudade". E até hoje choro por não ter conseguido salvar a minha mãe de um inferno de traições, agressões, gritos e brigas.

Seis anos depois, meu pai, que era alcoólatra, morreu de câncer no pâncreas. Cuidei dele durante os três meses e meio da sua doença. Logo após a sua morte, sonhei com meu pai me pedindo para publicar o livro "Cem Dias de Lágrimas" com tudo o que eu havia escrito durante a sua doença. Não consegui publicar o livro até hoje.

Três anos após a morte do meu pai, atendi o telefonema de uma mulher desconhecida:

"Sou a amante do seu marido. Você sabe que ele transa com garotas de programa? Deixa de ser idiota."

Assim que meu marido chegou do trabalho, perguntei se era verdade. Ele negou, disse que era vingança de uma ex-namorada que queria destruir o nosso casamento. Perdi completamente a confiança que sempre tive nele. Na mesma hora em que ele foi embora levando todas as suas coisas, chegou uma caixa da minha editora. Era o meu livro "Infiel: Notas de uma Antropóloga".

Nos momentos mais traumáticos da minha vida, nasceram meus livros. Em vez de antidepressivos e ansiolíticos, a escrita tem sido o meu remédio. Ou será o meu vício? Posso passar dias sem comer e sem dormir, mas nunca passei um só dia sem escrever. Minha primeira terapeuta, aos 21 anos, me aconselhou: "Pare de escrever e vá viver sua vida". É verdade: sou viciada em escrever.

Não me curei, e sei que nunca vou conseguir me curar, dos meus traumas, fobias e ansiedades. Muitas vezes mergulho no fundo do poço da tristeza e não sei como sair de lá. Escrever sempre foi, e sempre será, a minha salvação. Parafraseando Rubem Alves, escrever é o único jeito que encontrei de tentar transformar a minha dor em beleza.

"É o jeito que eu tenho de brincar. Livros são brinquedos para o pensamento. De todos os que escrevi, acho que o que eu mais amo é 'A Menina e o Pássaro Encantado'. Escrevi para transformar uma dor em beleza... A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável... São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas."

Tenho um armário abarrotado de cadernos com tudo o que vivi, pensei e sofri desde os meus 16 anos até hoje. Desisti de tentar curar a minha tristeza. Desisti de parar de sofrer e de ter tanto medo e ansiedade. Nunca desisti de escrever. Hoje, minha angústia existencial é outra: como posso conseguir transformar a minha tristeza em beleza?

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