Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo universidade

Nem todas as cartas de amor são ridículas

Como aprender a escrever com razão e sensibilidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comecei a dar aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1994, alguns meses depois de defender minha tese de doutorado "Toda Mulher é Meio Leila Diniz". Logo que ingressei na UFRJ, uma aluna brilhante do mestrado me escolheu como sua orientadora.

Após dois anos, quando só faltava escrever o capítulo de conclusão, marquei a data da defesa da sua dissertação. Assim que confirmamos a banca, ela comprou uma passagem para Berlim, pois iria morar com o namorado na Alemanha.

Só que ela não sabia que estava grávida. E, para piorar a situação, a gravidez foi muito complicada e ela foi parar no hospital várias vezes.

Carta de amor
Adriano Gadini por Pixabay

Quando ela se sentia um pouco melhor, vinha trabalhar na minha sala na universidade, pois não tinha computador no quarto onde morava. Trabalhava todas as tardes e, quando não conseguia escrever mais nada, conversávamos sobre o que ainda faltava para a defesa.

Mas a conclusão não andava. Todos os capítulos estavam praticamente prontos, mas ela não conseguia terminar a dissertação.

Sentia uma saudade desesperadora do pai do seu filho, que trabalhava na Alemanha e não podia largar tudo naquele momento para ficar com ela. Começou a pensar em desistir de defender a dissertação na data marcada.

Foi então que tive uma pequena epifania.

Como ela não tinha dinheiro, raramente falava por telefone com o namorado. Mas, todos os dias, escrevia longas cartas para ele. Naquela época, não existia WhatsApp e as ligações para o exterior custavam uma verdadeira fortuna, lembram?

Pensei: "Ela não consegue escrever a conclusão da dissertação, mas escreve, todos os dias, cartas para o namorado. Por que não transformar a conclusão da dissertação em uma carta para ele?".

Conversei com ela e perguntei se o namorado sabia o que ela estava escrevendo. Disse que sim e que ele gostava muito de conversar sobre a sua pesquisa.

Falei: "Hoje você não vai trabalhar na dissertação. Você vai escrever uma carta para o seu namorado. Você vai contar a ele, detalhadamente, tudo o que você fez na sua pesquisa. Comece contando por que você se apaixonou e escolheu esse tema, em que momento decidiu dedicar dois anos da sua vida à sua dissertação.

Depois, conte tudo o que você já sabia sobre o tema antes de começar a pesquisa e o que você descobriu durante esses dois anos.

Em seguida, conte todos os descaminhos e frustrações que teve, o que você precisou deixar de lado e o que desistiu de fazer. Conte o que de melhor e o que de pior aconteceu no período da pesquisa.

Conte todos os detalhes que pareciam insignificantes no início, mas que acabaram se tornando essenciais na sua pesquisa.

Conte o momento em que você decidiu terminar a dissertação e tudo o que você acha que ficou faltando, o que você gostaria de ter escrito e não conseguiu. Conte o impacto que a sua pesquisa teve na sua vida e na sua visão do mundo, quem você era e quem você se tornou depois de escrever a sua dissertação. Por fim, conte quais são os caminhos que você pretende seguir agora".

Três horas depois ela me entregou a carta que escreveu à mão: 12 páginas que me fizeram chorar de emoção. Ela só precisou cortar o primeiro parágrafo que escreveu:

"Meu amor, estou morrendo de saudade. Como não estou conseguindo fazer nada além de pensar na nossa filha e em você, quero te contar sobre a minha pesquisa".

E também cortou o último parágrafo: "Meu amor, espero que você tenha conseguido sentir toda a minha paixão por essa pesquisa. Eu te amo e não suporto mais ficar um só minuto longe de você".

Depois de cortar o primeiro e o último parágrafos, minha orientanda digitou a carta e incluiu na sua dissertação como conclusão. Ela defendeu a dissertação na data marcada e foi muito elogiada pelos professores que participaram da banca, especialmente pela beleza, profundidade e sensibilidade da conclusão. Um dos professores, parafraseando Fernando Pessoa, disse que ela provou que nem todas as cartas de amor são ridículas.

Lembrei-me desse fato quando estava buscando o tema da minha coluna de hoje para a Folha. E se eu escrevesse para a minha primeira orientanda e contasse que aprendi com ela a transformar os medos, obstáculos e dificuldades para escrever em cartas de amor?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.