Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Descrição de chapéu Corpo Todas Enem

No Brasil, as mulheres são cuidadoras invisíveis

'Você não faz nada além de cumprir suas obrigações de mulher', é a frase que escutam

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"Quem cuida de quem cuida? A invisibilidade da violência física, verbal e psicológica dentro das nossas casas e famílias" foi o título da minha coluna da semana passada. Gostaria de responder todos os comentários dos meus leitores e leitoras da Folha, mas o espaço não é suficiente. No entanto, não posso deixar de destacar a mensagem que recebi de uma médica, de 65 anos, que se apresentou como uma "típica representante da geração sanduíche".

"Mirian, você precisa escrever sobre o impacto da pandemia nas vidas das mulheres ensanduichadas. Minha mãe, de 92 anos, quebrou o fêmur e veio morar comigo. Meu filho caçula, de 40, ficou desempregado e também veio morar comigo. Apesar de estar divorciada do meu ex-marido há mais de dez anos, estou cuidando dele, pois ele teve um AVC no início da pandemia. Também cuido da mãe dele, minha ex-sogra, que está com Alzheimer. Ainda ajudo minha irmã mais velha, de 73 anos, que teve Covid e não tinha dinheiro nem para comprar os remédios e pagar os exames".

Para ela, o pior é a falta de respeito, de reconhecimento e de reciprocidade dos filhos e do ex-marido.

"Quando ligo para o meu filho mais velho, de 43 anos, ele reclama: ‘mãe isso é hora de ligar? Não sabe que estou ocupado? Não dá para ligar em uma hora que não me atrapalhe?’. Outro dia ele me pediu dinheiro para comprar um carro novo. Sabe o que ele me disse quando eu falei que estou sem dinheiro? ‘Você reclama o tempo todo, parece que ser mãe é um enorme sacrifício. Deixa de ser egoísta. Você não faz nada além de cumprir suas obrigações de mulher’. É muito triste dizer isso: mas recebo mais amor e carinho do meu cachorro do que dos meus filhos. Dos filhos, só recebo patadas. E meu ex-marido ainda me culpa: ‘Você criou dois parasitas que só se preocupam com o próprio umbigo. Até hoje você trabalha como um burro de carga e ainda dá dinheiro para dois sanguessugas. A culpa é sua!".

Getty Images

Além de não serem respeitadas, reconhecidas e valorizadas, muitas mulheres são maltratadas, machucadas e abandonadas pelos próprios filhos e cônjuges. Não é a toa, como disse a médica, que as brasileiras são as maiores consumidoras do mundo de ansiolíticos, antidepressivos e remédios para dormir.

"O que mais me angustia é a miséria afetiva e o sofrimento das mulheres mais pobres que não recebem nenhuma migalha de gratidão. Tenho uma paciente com câncer, de 72 anos, que trabalhou a vida inteira como cozinheira para sustentar a casa e os estudos do filho. O marido foi embora quando descobriu que ela estava doente. O filho está desempregado e vive da aposentadoria dela. Ela me contou, chorando, que o filho transferiu todo o dinheiro que ela tinha na poupança para a conta dele e a convenceu a colocar no nome dele a casinha que ela comprou com muito sacrifício. ‘Meu filho me disse que não queria ter trabalho com a burocracia depois da minha morte. Só faltou ele dizer para eu morrer logo para não atrapalhar a vida dele’".

Desde março de 2015, venho acompanhando trinta famílias em que convivem, de maneira bastante intensa e conflituosa, quatro diferentes gerações: mães e pais de mais de 90 anos, seus filhos e filhas de mais de 60 anos, além de seus netos e bisnetos. Em apenas uma das famílias pesquisadas, o filho, de 66 anos, é o principal cuidador da mãe, de 95. Nas demais, as mulheres são as únicas cuidadoras dos pais idosos, dos filhos e, muitas vezes, dos netos.

A divulgação do Censo 2022 e o tema da redação do Enem 2023 provocaram um amplo debate sobre questões centrais nas minhas pesquisas: o impacto social do crescimento acelerado da população idosa no Brasil e os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres. Parece que, finalmente, grande parte da população brasileira está se mobilizando para exigir que o Estatuto da Pessoa Idosa, de 2003, seja cumprido. Não enxergar, não reconhecer e não valorizar o trabalho de cuidado das mulheres é uma espécie de "morte simbólica": muitas cuidadoras invisíveis estão ficando doentes física e emocionalmente porque cuidam de todos, mas não têm tempo para cuidar de si.

Afinal, quem cuida de quem cuida?

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