Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg
Descrição de chapéu Corpo Todas ansiedade

É preciso saber viver!

Nunca deixamos de ser a criança que um dia nós fomos

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No sábado de Carnaval, acordei cantando um sambinha: "Se você chora, se você sofre, se você só quer se aborrecer… Você não sabe viver, você não sabe amar, você não quer entender que um dia você também morrerá. Você não é diferente de ninguém, você é gente também. Por isso venho agora dizer… Você não sabe viver".

Conhece? Lógico que não. Escrevi o sambinha quando eu tinha seis anos. Foi a única música que escrevi em toda a minha vida.

Sempre achei que havia escrito a letra para o meu pai: um homem violento, autoritário e espancador dos filhos e da esposa. Foi a forma que encontrei de expressar o que nunca tive a coragem de dizer diretamente ao meu pior algoz.

De cima de um palco, homem de terno azul segura rosa vermelha em direção ao público
Roberto Carlos distribui flores em show em São Paulo - Buno Santos - 27.jul.22/Folhapress

Meu marido me ouviu cantando: "Se você chora, se você sofre, se você… Você não sabe viver…". Ele perguntou: "Está em sofrimento absoluto?"

Não soube como responder. Não sabia porque estava me sentindo tão angustiada e ansiosa. Estava em "sofrimento absoluto", mas não sabia direito o motivo.

Poderia ser por um motivo gravíssimo, como o fato de a minha melhor amiga, de 98 anos, estar hospitalizada com pneumonia há vinte dias. Ou por ter recebido uma crítica destrutiva de uma das pessoas mais narcisistas, arrogantes e invejosas que eu conheço. E com a qual, infelizmente, sou obrigada a conviver por motivos profissionais.

Ou por ter fraturado um osso do dedo do pé e não poder caminhar há mais de dez dias. E ainda me culpar por ter dado a topada no sofá da sala.

Tenho lido muitos livros e artigos científicos sobre hipersensibilidade e talvez tenha descoberto um nome para explicar o meu "sofrimento absoluto". Será que sou hipersensível?

Até então eu chamava meu "sofrimento absoluto" de "burrice emocional". Desperdiço muito tempo, saúde e energia com pessoas desprezíveis que não deveriam ter espaço na minha vida. São incontáveis as minhas noites de insônia me preocupando com bobagens. É ou não é "burrice emocional"?

Sofro demais, sou angustiada e ansiosa demais, sensível e insegura demais. Mas também sou apaixonada demais, amorosa demais, atenciosa demais. Presto atenção em mínimos detalhes que são praticamente invisíveis para outras pessoas.

Meu melhor amigo, de 98 anos, brinca: "Como você é exagerada!"

Como Cazuza, eu sou mesmo exagerada, "até nas coisas mais banais, para mim é tudo ou nunca mais". Não economizo amor; não economizo dor.

Achei que iria mudar depois de quase morrer em um incêndio no ano passado. Tinha esperança de me tornar uma mulher diferente, mais madura, corajosa e equilibrada, e aprender a dar importância só ao que é realmente relevante e significativo, a ignorar as bobagens, a nunca mais brigar com meu marido, a aproveitar e saborear cada minuto da minha vida. Aprender a nunca mais desperdiçar meu tempo com pessoas tóxicas. Aprender a nunca mais me comparar e sentir inveja das meninas felizes que estão pulando Carnaval fantasiadas de princesas enquanto eu ainda me sinto prisioneira de um inferno de gritos, surras e brigas. Aprender a ter uma vida com propósito e significado, 24 horas do meu dia. Aprender a rir e brincar muito mais, e a ser grata aos anjos que me salvam do "sofrimento absoluto".

Quase três meses depois do trauma que vivi, continuo a mesma menininha machucada, apavorada e desamparada: sofrendo com as maldades de pessoas perversas, com medo do pai agressor, sentindo a dor da topada do dedinho e, pior ainda, me culpando por não ter mudado nadinha.

No sábado de Carnaval, cantando o sambinha de minha autoria, tive uma pequena epifania. Não escrevi a música para o pai opressor. Escrevi para a menininha triste que, até hoje, sente um "sofrimento absoluto".

Foi então que percebi que estava na hora de mudar o disco. Em vez de "Você não sabe viver", acho mais saudável cantar com Roberto Carlos: "Quem espera que a vida/ Seja feita de ilusão/ Pode até ficar maluco/ Ou morrer na solidão /É preciso ter cuidado/ Pra mais tarde não sofrer/ É preciso saber viver/ Toda pedra no caminho/ Você pode retirar/ Numa flor que tem espinhos/ Você pode se arranhar/ Se o bem e o mal existem/ Você pode escolher/ É preciso saber viver".

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