Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

Nenhuma mulher nasce livre: torna-se livre

Para a mulher, não há outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação

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"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher" é a famosa frase que resume as 900 páginas de "O Segundo Sexo", publicado na França em 1949.

Simone de Beauvoir argumentou que a mulher livre —a mulher que luta pela sua autonomia econômica, social, psicológica e intelectual— estava apenas nascendo. Para ela, ser mulher não é somente nascer com um determinado sexo, mas é, principalmente, ser classificada de uma forma negativa pela sociedade. É ser educada, desde o nascimento, a ser frágil, passiva, dependente, apagada, delicada, discreta, submissa e invisível.

"Não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação". Para tanto, cumpre-lhe "recusar os limites de sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; a resignação não passa de uma demissão e de uma fuga".

Simone dando autógrafos em São Paulo, 6 de setembro de 1960. Do livro Simone de Beauvoir, uma vida
Simone de Beauvoir dando autógrafos em São Paulo, em 1960 - Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir, © Distribuição Gallimard

Tive a sorte de ler "O Segundo Sexo" aos 16 anos. Desde então, reli incontáveis vezes o livro que mudou decisivamente o rumo da minha vida e que influenciou todas as minhas escolhas profissionais, amorosas e existenciais. A obra de Simone de Beauvoir é a maior inspiração para minhas pesquisas sobre a violência física, verbal e psicológica que as brasileiras sofrem, especialmente dentro das próprias casas e famílias.

É impossível descrever a emoção que senti quando, em 2019, recebi o convite para escrever um texto de apresentação para a edição comemorativa dos setenta anos de "O Segundo Sexo". Como a menina de 16 anos, que começou a trilhar os próprios caminhos de libertação depois de ler toda a obra de Simone de Beauvoir, poderia sonhar que iria escrever um texto para o livro mais importante de toda a sua vida?

Também tive a alegria de escrever o prefácio de "A força da idade", livro autobiográfico de Simone de Beauvoir, publicado na França em 1960. No meu texto, destaquei que muitos estudiosos defendem que o século 20 foi o século da revolução das mulheres. Para mim, a protagonista dessa revolução feminista foi Simone de Beauvoir.

Em "A força da idade", Simone de Beauvoir mostrou a importância da sua parceria com Jean-Paul Sartre, com quem teve por mais de 50 anos uma relação nada convencional para a época e também para os dias de hoje. A liberdade era, para os dois, a "única regra".

"Nada nos limitava, nada nos definia, nada nos sujeitava; nossas ligações com o mundo, nós é que as criávamos; a liberdade era nossa própria substância. Éramos escritores. Qualquer outra determinação era impostura. Empenhados de corpo e alma na obra que dependia de nós, libertávamo-nos de todas as coisas que não dependiam dela."

Além da ânsia pela liberdade, Simone de Beauvoir afirmou que tinha uma "obstinação esquizofrênica da felicidade".

"Em toda a minha existência, não encontrei ninguém que fosse tão dotada para a felicidade quanto eu, ninguém tampouco que se prendesse a isso com tamanha obstinação. Logo que a toquei, tornou-se minha única preocupação."

Recentemente, tive outra grande alegria: escrevi o prefácio da nova edição de "A convidada", primeiro romance de Simone de Beauvoir, publicado na França em 1943. Baseado no triângulo amoroso formado por Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Olga Kosakiewicz, o livro é uma espécie de confissão do ciúme e do desespero de uma mulher que lutava obsessivamente pela própria liberdade, mas que se sentia prisioneira do desejo de ser a única na vida do seu companheiro. O que mais me chamou atenção em "A convidada" foi a recorrência da categoria "à mercê".

"Não sou ninguém... Há uma solidão que cada um decide por si mesmo... O ciúme, o rancor, sentimentos que sempre recusara, falavam agora bem alto... O problema não tem solução... Não havia cura possível... Depois de tantos anos de serenidade triunfante, de dureza na conquista da felicidade, de exigências apaixonadas, iria se tornar, como tantas outras, uma mulher resignada?... Agora caíra na armadilha, encontrava-se à mercê da consciência voraz que esperara, no escuro, o momento de devorá-la. Ciumenta, traidora, criminosa."

Minha inspiração para escrever "A invenção de uma bela velhice" foi a magnífica obra "A velhice", de Simone de Beauvoir, publicada na França em 1970. Conclui o livro reconhecendo a importância das duas mulheres que me ensinaram que liberdade é a melhor rima para felicidade: Simone de Beauvoir e Leila Diniz, tema da minha tese de doutorado em antropologia social defendida em 1994. Leila Diniz dizia que era uma mistura de Marilyn Monroe com Dercy Gonçalves. Eu gostaria de ser meio Leila Diniz e meio Simone de Beauvoir, mas sei que só posso ser inteira Mirian Goldenberg.

Iniciei a minha conferência para me tornar professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em maio de 2015, com um trecho do primeiro livro autobiográfico de Simone de Beauvoir, "Memórias de uma moça bem-comportada", de 1958.

"Por que resolvi escrever? Temia a noite, o esquecimento; o que eu vira, sentira, amara, era-me desesperante entregá-lo ao silêncio. Comovida com o luar, desejava logo uma caneta, um pedaço de papel e saber utilizá-los. Escrevendo uma obra tirada da minha história, eu criaria a mim mesma de novo e justificaria minha existência."

Se eu estava destinada a ser uma "moça bem-comportada", como tantas mulheres da minha geração, a obra de Simone de Beauvoir me deu a coragem necessária para me tornar uma antropóloga muito malcomportada. Afinal, parafraseando a célebre frase de "O Segundo Sexo", nenhuma mulher nasce livre: torna-se livre.

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