Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.
Thiago Fragoso interpreta oficial nazista e critica volta da direita radical
No avião viajando do Rio de Janeiro para São Paulo, Thiago Fragoso passa o texto da sua próxima peça, "As Benevolentes". O ator gesticula e murmura as palavras do monólogo. Ele tem apenas algumas semanas para decorar as falas antes da estreia, marcada para 21 de janeiro. Quando percebe, vários passageiros estão olhando.
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"Devem achar que sou doido", conta, rindo, já na capital paulista, à repórter Letícia Mori. "Eu esqueço que tem gente do lado. Alguns voos são mais silenciosos e não dá para fazer isso."
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São os últimos dias de 2015 e, em vez de viajar para passar o Réveillon em algum lugar badalado, como parte de seus colegas da Globo, o ator, de tênis e moletom, participa de um ensaio no teatro do clube A Hebraica, em Pinheiros.
"Fomos mexendo no texto e quando vimos estava em cima da hora. Vamos aproveitar todo o tempo para ensaiar", diz ele, que foi convidado para o espetáculo pelo diretor Ulysses Cruz em meio às gravações de "Babilônia" e só conseguiu se dedicar de fato ao projeto após o fim da novela, em agosto.
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"Depois que meu filho nasceu, consegui dosar a quantidade de trabalho na vida", diz ele, que tem um menino de 4 anos, Benjamim, com a mulher, a atriz Mariana Vaz.
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Thiago já tocou até cinco projetos ao mesmo tempo. "Fazia show com minha banda, tinha peça em cartaz, gravava filme, fazia novela... Era teste pra cardíaco", afirma o artista, que chegou a trabalhar 50 horas seguidas e dormir e comer só durante o trajeto entre um local e outro. "Não me considero um workaholic, hoje sou mais um worklover", diz ele, cujo jeito tranquilo parece contrastar com tanta agitação.
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Seu próximo papel é o primeiro nos palcos depois do acidente no musical "Xanadu" que o deixou com fraturas e lesões internas e o manteve internado por 17 dias em 2012. Ele, que move um processo contra a produtora, caiu de uma altura de 5 m após o rompimento de cabos. "Fiquei sem fazer teatro muito em função do acidente, foi um episódio muito traumático. Mas agora tô bem. Esse espetáculo está sendo uma prova", diz.
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Com seus cachos loiros alisados e o cabelo raspado do lado em estilo militar, ele agora se prepara para viver um oficial da SS, a polícia nazista. No monólogo, o personagem fala sobre suas memórias da guerra. "Chega aí, vamos fazer uma coisa bem teatral", diz, e monta bancos no palco com as peças do cenário para conversar com a repórter.
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Sentado em um deles, entre estacas pretas enfiadas no chão, ele explica que a ambientação é uma referência ao Memorial do Holocausto, em Berlim. "A Segunda Guerra Mundial é o tema mais esgotado do século 20. Como falar algo novo sobre isso? O que a gente vai fazer de diferente? É um desafio", diz.
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O ator afirma que normalmente não aceitaria um papel sobre o assunto se não tivesse pelo menos um ano para se dedicar. "Mas aí o Ulysses me disse que não queria entrar em detalhes históricos, e sim fazer uma investigação sobre o mal de um ponto de vista filosófico e psicológico. Achei interessante."
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Maximilien Aue, o protagonista de "As Benevolentes", trata de crimes da guerra como assuntos a resolver tecnicamente. É baseado no livro de mesmo nome do escritor Jonathan Littell. "É polêmico por causa do ponto de vista, mas critica nossa falta de empatia uns com os outros. Como milhares de pessoas normais podem aceitar isso e fazer parte disso? Como fazer para que isso não se repita?"
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"É um questionamento muito atual quando a gente vê a direita radical ressurgindo na Europa", diz. Faz uma pausa, pensa e continua: "E no Brasil também. A gente vive um momento de muita intolerância política, racial. Acho triste a gente conviver com essa venda nos olhos e dizer que o Brasil não é racista. A gente vê as pessoas usando a internet de forma odiosa, com muito preconceito."
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Ele próprio diz não ter sofrido ataques ao interpretar Nico em "Amor à Vida" (2013). O personagem foi protagonista do primeiro beijo gay em uma novela das nove da Globo, ao lado de Félix, vivido por Mateus Solano. "Eu, por incrível que pareça, não senti isso [preconceito] com o Nico. As tias e as avós gostavam muito dele", diz, rindo.
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Relembra que Nico era "o contrário" de seu personagem na peça, "sentia uma empatia extrema com os outros, não podia ver alguém sofrendo". E direcionou sua atuação pela personalidade, não pela orientação sexual dele. "Ninguém define as pessoas por serem heterossexuais! Você não vai dar uma entrevista e falar 'então, gente, eu faço um heterossexual...' Nunca falei isso na minha vida! Então por que eu vou dar uma entrevista falando 'eu faço um homossexual'?"
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"Um mês depois [o beijo] ainda era capa de jornal... Repercutiu em jornais internacionais, fiquei impressionado. Só muito tempo depois você consegue entender a importância do que você fez parte."
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O ator diz que gosta de deixar os personagens falarem por ele sobre "causas que precisam de conscientização e debate". E cita, além de Nico, Nando, de "O Clone" (2001), que usava drogas.
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"Sou a favor da descriminalização, acho que a política retrógrada de tolerância zero não leva a nada", diz ele, que na época foi questionado sobre sua experiência com drogas, mas deu poucas opiniões. "Quando a gente aparece muito, fica na frente, o personagem tem dificuldade pra sair, atrapalha o público na hora de ver um personagem novo."
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Uma característica sua que acabou ficando marcada foram os cachos, que fazem muita gente vê-lo como "anjinho", não importa o personagem. "Me irrita um pouco. As pessoas falam que com esse cabelo fico meio romântico... Desculpa, mas meu cabelo é cacheado. Foi mal aí. O que faço? Começo a raspar a cabeça? Tem tratamento genético para acabar com o cachinho?", ironiza.
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Passa a mão nas mechas agora alisadas e continua: "Eu gostei de mudar um pouco, ficar com esse visual de guerra. Por mim eu continuo assim dois anos! As pessoas não vão esquecer, obviamente. As vovozinhas vão me encontrar e falar: 'Meu filho, cadê os seus cachinhos?'", diz, bem-humorado, interpretando uma velhinha.
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Coincidentemente, no dia em que diz tudo isso ele ganhou um anjinho da adaptadora do texto da peça, Valderez Cardoso Gomes. Mas esse não o incomodou. "Ela ficou falando: 'você tem que ter proteção!'", diz Thiago. Ele carrega, para o mesmo fim, dois pingentes de ouro no pescoço, presente da mulher.
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Thiago se diz pouco supersticioso, mas antes de sair do teatro revela um plano: "A gente ainda vai botar sal em todos os cantos aqui. Tem que botar sal, bater muito na madeira, porque o tema é pesado". E sai com o texto na mão para pegar um táxi na marginal Pinheiros, vazia na antevéspera do Ano-Novo.
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