“O ser humano, para ser pleno, tem que se expressar”, diz Tonico Pereira, 70, enquanto come polenta frita. “Não importa se é ator, bancário, pintor de parede. Tem que estar presente no mundo”, emenda, sentado à mesa no restaurante Othelo, onde é habitué, na zona sul de São Paulo.
“Tenho que ir à 25 de Março”, diz o ator enquanto faz caras e bocas para esta entrevista. Dono de uma loja em Botafogo, no Rio, ele queria ir à rua de comércio popular no centro paulistano para comprar pulseiras e colares para revender.
Tonico também é dono de uma marca de camisetas. Naquele dia, vestia uma em que a estampa dizia “Vira-latas made in Brazil!!!”
Ele não come mais carne por estar “à beira da hemodiálise” e diz estar bebendo “pouquíssimo, pelo que bebia”. Mas fuma. “Aliás, posso fumar esse”, lembra-se —e liga um cigarro eletrônico que trazia no bolso.
Tonico encena neste domingo (9) a última sessão de “O Julgamento de Sócrates”, o primeiro monólogo de seus 50 anos de carreira, no shopping Frei Caneca.
SER ARTISTA
Eu mergulho em mim mesmo. Fundo. Quase me afogo. Tenho todas as experiências do mundo em mim. Tudo está dentro de você. Sem exceção. Quem não pensar assim não tem grandeza de ser humano.
A gente é Deus, porra! O ser humano é Deus. Todos são artistas. Mas isso não é um estado constante. Acontece num desvio que o taxista deu para não matar um pedestre. Ele foi Deus naquele momento. Posso ter sido numa vírgula em 50 anos de profissão. Não foi o constante das interpretações.
O artístico pode acontecer com qualquer ser humano. E o artista, pra mim, é Deus. Não é uma banalização. Você pode ter “likes” nas redes sociais. Isso não quer dizer que você seja nada. Só uma celebridade.
CULTURA
A Cultura [no Brasil] nunca foi olhada com grandiosidade. Ao contrário do [que faz o] americano, por exemplo. O cinema deles está no mundo inteiro. Pode ser um cinema de merda.
Há poucos dias tive uma conversa num botequim com um cara do Maranhão. Ele perguntou: “Você vê o Rambo?” Veja o que é a ação de uma cultura em cima de um povo: o Rambo serve de exemplo para um cara nascido no Maranhão falar que legal é Schwarzenegger. Ou aquele outro —um que faz mais caretas do que todos, que quase não fala porque se der texto ele tropeça. [“O Sylvester Stallone?”, pergunta o assessor de Tonico sobre o ator de “Rambo”] Isso, o Stallone!
Eu não guardo nome em inglês de ninguém, nem de nada.
E o cara estava citando um filme de ficção americano como padrão de justiça. Entendeu?
MUSEU NACIONAL
[O incêndio que destruiu a instituição] É o resultado do projeto brasileiro para a cultura: nenhum. O governo Temer enterrou... ou melhor, o Museu Nacional foi cremado pelo Temer. Acho que vou postar isso.
REDES SOCIAIS
Eu sempre fui um cara muito anárquico e pouco ouvido, até por essa coisa minha de não ser levado a sério porque falo muito. E as redes sociais me deram a oportunidade de falar diretamente com as pessoas.
Para mim, é obrigatório ter opinião. Mas tem gente que é loucura. Que fala coisa da qual não sabe nem do que se trata. A internet abriu campo para essas coisas.
Eu tenho uma compulsão por pensar. E uma outra compulsão por expor o que penso. Não gosto de me trancar. Acho que estou adiando um infarto por não acumular, por botar pra fora.
POLÍTICA
A educação no Brasil é uma coisa que foi jogada em segundo plano. E, ao não se educar, a pessoa vota errado. Vota contra ela mesma, até. Você encontra um negro falando que vota num candidato racista, gay falando que vota num candidato anti-gay. Aí é foda.
O que eu quero é, no tempo em que eu vivi, ter cumprido o meu dever de pensar e votar pelo ser humano.
Eu estava conversando com o meu filho, explicando para ele o que é o individualismo e a possibilidade de você ser eficiente para a humanidade. Sabe há quantos anos o Sócrates viveu? Há 2.400 anos. Ele até hoje está me fazendo discutir as ideias dele. Isso é que é transcender o rame-rame.
VAI VOTAR?
Vou. Claro. A primeira vez que eu votei eu botei terno, porra. As pessoas não sabem que não votar é um ato político. Anular é um ato político. Votar em branco é um ato político.
LEI ROUANET
Ela é bem-vinda. Mas tem que ter critérios mais rígidos. E os grandes conglomerados já impõem a primeira censura. Você acha que vão financiar uma peça minha? Do jeito que eu sou? Não. Preciso fazer umas 20 novelas das oito, fazendo papel de mocinho, pra conseguir um financiamento.
ESTUDO
Não fiz escola de nada. Nunca pretendi nem quis. Não fui acadêmico [ele completou o segundo grau]. Preferi viver a vida com curiosidade. Com interesses que eu acho que são melhores para o homem, que é o próprio homem. É a minha formação. Me orgulho dela. Do fato de ter vivido, né? Vivido, e não lido.
Eu nasci numa zona de prostituição [em Campos dos Goytacazes]. Fui criado em bares e puteiros. Amigos meus são filhos dessas moças. E isso me deixou crente de que elas são mulheres também maravilhosas. Não chamo ninguém de filho da puta.
PRÓTESE
[Tonico usa uma prótese por conta de uma disfunção erétil causada pela diabetes] É a minha segunda já. A primeira era maravilhosa. Eu posso estar aqui fazendo uma puta propaganda da prótese, né? Podiam me remunerar por isso. Seria bom.
ASSÉDIO
Odeio me censurar, e hoje eu tenho um pouco de medo de fazer um elogio a uma mulher. Porque tudo pode acontecer a partir disso. No sentido de falar “você é linda” e de repente a pessoa tomar isso como assédio. Não sei! Não estou julgando. Estou dizendo que não sei.
MACHISMO
Eu tenho 70 anos e venho de uma cultura machista, né? Hoje me arrependo de muita coisa. E também acho que o machismo não é uma propriedade masculina. É da cultura. A minha mãe era machista, provavelmente a mãe de muita gente talvez seja ainda hoje.
CONSERVADORISMO
Cada um tem a opção de fazer o que quiser, contanto que não mate, não machuque ninguém. Aí você pega uns caras, que são homens, e se acham donos do aborto da mulher, do cu de não sei quem. Porra! Que isso? Um cara que não tem útero legislar sobre o útero de uma mulher? É um demérito para a própria mãe dele. Cuida da sua cabeça, do seu rabo. Né?
ARREPENDIMENTOS
Estou pronto para errar. É mais modificador que o acerto. Uma das frases mais burras que um ser humano fala é: “Nunca me arrependi de nada”. Eu vivo me arrependendo —até do que falei um minuto atrás.
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