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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Não tenho muito o que me queixar da vida', diz a cantora Alaíde Costa

Aos 85 anos, cantora não vê problemas em envelhecer, critica racismo na sociedade e celebra disco com canções de José Miguel Wisnik

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Alaíde Costa

A cantora Alaíde Costa Kazuo Kajihara/ Sesc-SP

São Paulo

Passadas mais de seis décadas de carreira, a cantora Alaíde Costa, 85, diz que ainda sente frio na barriga antes de subir ao palco. “Até hoje sou uma pessoa bem tímida”, conta. “Mas naquela época era muito mais. Chega na hora, a gente acaba vencendo a timidez e segue em frente”, continua.

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A música sempre esteve presente na vida de Alaíde. Ela diz que o acontecimento que realmente a incentivou a seguir carreira no ramo foi quando se apresentou no programa de calouros comandado por Ary Barroso, quando tinha 16 anos. “Ele me deu nota máxima”, diz. “E ele era muito exigente, sabe? Muito exigente mesmo. Já naquela época eu procurei cantar uma coisa diferenciada do que se ouvia.”

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Cantora associada à bossa nova, Alaíde diz que o cenário musical brasileiro, nos dias de hoje, está muito “confuso” e “esquisito”. “Muita coisa mudou. Aliás, muda a toda hora. A cada ano que passa, surge um movimento, uma música diferente. Hoje está tão confuso, né? O que eu entendo como música... Sei lá, tá esquisito.”

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“Tá esquisito porque não tem música. Tem gente praticamente quase falando. Não tem aquela coisa da melodia bonita. É o que eu acho, posso estar errada”, segue. “A mídia hoje está interessada nesses sucessos repentinos que depois de alguns meses somem. É complicado.”

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No dia 8 de dezembro, data em que comemorou 85 anos, a cantora lançou o disco “O Anel - Alaíde Costa Canta José Miguel Wisnik”, pelo selo Sesc, no qual interpreta dez músicas do ensaísta e compositor.

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“Ele é uma pessoa muito especial para a minha vida”, diz. Ela conta que foi a primeira pessoa a cantar uma música de Wisnik, em um festival universitário nos anos 1960. “Nós batalhamos bastante [pelo CD] e agora ele está pronto. Modéstia à parte, está lindíssimo!”

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As gravações ocorreram nos meses de setembro e outubro de 2020. “Nós tomamos todos os cuidados. Todos os envolvidos fizeram uns quatro ou cinco testes [de Covid-19]. Estou felicíssima com esse trabalho. E fazia tempo que eu não me sentia tão feliz assim.”

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Aos 85 anos, não enxerga problemas em envelhecer. “Temos que assumir a idade numa boa, sem se preocupar com isso. Essa preocupação que faz a gente envelhecer mais depressa”, diz. “Estou bem. Claro, um pouco cansada. Por mais que a gente queira, os anos vão pesando um pouco. Já não tem mais aquele vigor, aquela disposição. Correr já é um negócio difícil, por exemplo [risos]. Mas ando, caminho, subo e desço escada numa boa”, segue.

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“Gostaria de viver melhor do que eu vivo em termos financeiros. Mas como diz o Chico [Buarque]: ‘A gente vai levando, a gente vai levando’. Não tenho muito o que me queixar da vida, sabe. Embora ela não tenha sido muito fácil. Mas é a gente que faz a vida, não é ela que faz a gente.”

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E reflete sobre os anos que já se passaram: “Todas as épocas, as boas e as difíceis, são válidas. Se eu for falar das ruins, vou chorar. E falar das boas também choro, porque elas já ficaram lá atrás.”

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Alaíde chegou a fazer algumas lives na quarentena. Uma delas chamou a atenção do cantor Emicida e do produtor Marcus Preto, que agora preparam um álbum para a cantora. Conta que o convite a pegou de surpresa. “Nunca imaginaria que eles tivessem interesse de fazer um trabalho comigo.”

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Diz que já estão recebendo melodias de alguns artistas, entre eles Ivan Lins, Marcos Valle e Guinga —Emicida ficará responsável pelas letras, conta. “Estamos aguardando. Acho que em breve isso vai estar resolvido.”

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Ao tratar de sua carreira, diz que não tem arrependimentos. Mas acredita que foi prejudicada por ser uma mulher negra. “Não fiz concessões, de cantar o que eu não quero para agradar as pessoas. Não faço mesmo, nunca fiz e nunca vou fazer. Então acho que fui muito prejudicada, sim”, segue. “Sempre procurei cantar um tipo de música que não agradava. E que até hoje não agrada muita gente. Mas é o que eu gosto, é o que eu sinto e é o que vou fazer até morrer.”

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“Nesse nosso Brasil, a mulher negra tem que ir lá e cantar samba. Não tenho nada contra o samba, mas eu não sei cantar. No máximo Paulinho da Viola, que é um samba mais elaborado, Elton Medeiros…”

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“O Johnny Alf, que foi cantor e compositor maravilhoso, também foi um tanto prejudicado por ser negro. E assim como eu, ele era o único que fazia uma música diferenciada”, segue.

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“[O racismo] é uma coisa tão absurda que não dá para entender. Quando eu era criança, na escola, os livros nos ensinavam que o pretinho era sempre quem estava fazendo a coisa errada. Nunca um branquinho. Eu ouvia assim: ‘É pretinho, mas tem alma branca’. E alma tem cor? Quem viu a alma pra dizer que tem cor? Isso é uma coisa absurda!”.

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“Gostaria que meus netos e bisnetos não passassem por coisas assim, sabe? Por conta do preconceito. Todos são mestiços, uns mais clarinhos, outros mais escurinhos como eu. Mas são todos iguais.”

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Alaíde conversou com a coluna por chamada de vídeo direto de sua casa, em SP. Diz que toma todos os cuidados necessários para evitar o contágio da Covid-19, mas que não ficou completamente isolada.

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“Não estou muito radical nessa coisa da pandemia. E não é porque eu não acredito, eu acredito nela. Mas tomo todas as precauções possíveis para não pegar”, diz. “Não estou muito em pânico, não, senão a gente enlouquece. Na minha opinião, ficar confinada em casa o tempo todo não é uma coisa boa”, emenda.

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Ela lamenta a crise gerada no setor cultural por causa do vírus. “Tem sido drástico para muita gente. Inclusive eu. Não vou dizer que estou numa boa, porque a situação ficou complicada. Artista vive da sua arte, então ficou muito difícil mesmo. Mas, enfim, a gente sobrevive, né?”

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Alaíde espera que as coisas melhorem com o fim da epidemia. “Acho que isso aí está sendo um aprendizado para muita gente, para refletir bastante sobre o que é bom e o que é ruim. Que volte de uma forma mais humana, mais colaborativa”, segue.

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Quando o assunto é política, prefere não comentar. “Procuro não me envolver muito nessas coisas. Prefiro ficar caladinha, assim, na minha. E aguardar os resultados.”

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No ano passado, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, retirou o nome da artista de lista da instituição que homenageava personalidades negras. Também foram excluídos outros 26 nomes, entre eles o da ex-ministra Marina Silva e os dos cantores Gilberto Gil e Elza Soares. Em dezembro, o Senado chegou a aprovar revogação dessa portaria. O projeto de decreto legislativo ainda precisa ser aprovado pela Câmara.

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Alaíde não tinha conhecimento da decisão de Camargo. Após a entrevista, mandou um áudio à coluna para dizer que se sentia honrada de fazer parte de tal lista ao lado “de tantas pessoas importantes que representam a cultura brasileira”.

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Antes de se despedir, a cantora quis deixar uma mensagem a seus amigos. “Quero mandar um abraço, um beijo aos meus amigos, aos meus colegas, cantores, músicos, que eu sinto saudades de todos. Esses amigos vão saber quem eu... Não vou listar nomes porque é muita gente”, diz, entre risos.

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“Mas eles vão saber que eu estou falando deles. Então um beijão a todos e vamos nos reencontrar em breve, espero.”

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