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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Nós, mulheres, temos que ocupar todos os espaços', diz Dainara Toffoli

Cineasta comemora o bom momento para mulheres no audiovisual brasileiro e torce para que a busca por diversidade nas produções cinematográficas não seja um movimento passageiro

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A cineasta gaúcha Dainara Toffoli

A cineasta gaúcha Dainara Toffoli Eduardo Knapp/Folhapress

Dainara Toffoli não para de falar. É uma aflição compreensível, uma sensação de urgência de quem tem muita história para contar e nenhuma garantia de que vai ter tempo ou meios para isso.

A cineasta gaúcha de 54 anos, formada em jornalismo (e sem nenhum parentesco com o ministro Dias Toffoli, do STF), conta que levou anos até ter coragem de assumir, para si mesma e para o resto do mundo, que tinha o desejo de ser cineasta. "Sempre me fascinou a ideia de provocar a emoção das pessoas e por meio dessa emoção trazer junto uma reflexão sobre a vida", afirma.

A cineasta gaúcha Dainara Toffoli
A cineasta gaúcha Dainara Toffoli - Eduardo Knapp/Folhapress

Mas daí a dizer ‘quero ser cineasta’ foi um longo caminho. "Comecei comendo pelas beiradas, fazendo assistência de produção, depois de roteiro, aí assumindo um pouco mais a escrita da história. O desejo sempre existiu, mas parecia completamente inalcançável quando eu comecei a trabalhar".

Quando perguntavam o que ela queria fazer da vida, respondia que queria "trabalhar com roteiro ou com montagem", como se chama a edição de um produto audiovisual. Eram os anos 1980, 1990, e mulher diretora de cinema era algo raríssimo. Ainda mais fora do eixo Rio-São Paulo.

O início da carreira de Dainara, ou Daina, como é chamada por amigos e colegas, foi especial e muito peculiar. "Consegui um estágio na produção do curta ‘Ilha das Flores’ porque eu tinha uma Brasília velha e a produção precisava de transporte", conta. "Eu fazia tudo de que precisava e eles pagavam a gasolina", lembra.

"Ilha das Flores" é um curta-metragem documental lançado em 1989 e que trata, de maneira ácida e irônica, do papel do capitalismo na desigualdade social. Mas essa descrição não chega nem perto de dar conta do quão brilhante é esse trabalho, escrito e dirigido por Jorge Furtado, que está na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Narrado por Paulo José, "Ilha das Flores" é um clássico, um fenômeno de público e de crítica como nenhum outro documentário brasileiro. Ele acompanha a trajetória de um tomate, desde que é colhido no campo de cultivo do Senhor Suzuki, um agricultor que o vende para um supermercado. Lá, o tomate é escolhido pela vendedora de perfumes Anete, para fazer um molho. No entanto, no caminho até sua casa, o tomate acaba amolecendo e é jogado no lixo.

E chega, junto de outros itens descartados, ao aterro que se chama Ilha das Flores, nos arredores de Porto Alegre, uma ilha de lixo a céu aberto. Lá, os criadores de porcos oferecem os restos de comida aos animais. O que nem os animais consideram comestível acaba sendo consumido por mulheres e crianças pobres da região.

Essa história, narrada como se fosse um documentário desses que mostram animais em seus habitats naturais e evitam retratar os predadores como malvados e as presas como vítimas, evidenciava de uma maneira muito contundente a injustiça promovida pela desigualdade entre pobres e ricos. Em 13 minutos, "Ilha das Flores" fez muita gente entender, e, mais que isso, sentir na pele, como é a realidade de quem enfrenta o maior problema social brasileiro.

A Brasília velha de Daina, que permitiu que ela desse início à carreira com que sonhava, era um carro que o pai tinha comprado para a família quando ela tinha 6 anos de idade. Na época do documentário, ela tinha 18, e a Brasília de 12 anos não era só dela. Dainara tem uma irmã gêmea idêntica, Tatiana.

A cineasta Dainara Toffoli no terraço de sua casa na Vila Madalena, em São Paulo
A cineasta Dainara Toffoli no terraço de sua casa na Vila Madalena, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

"Ninguém contou para a minha mãe que ela estava esperando dois bebês", diz Dainara. "Ela tinha 1,54 m e era muito miudinha, então meu pai e o médico decidiram não revelar para ela não ficar assustada. Aí, quando a gente nasceu, ela só tinha um nome escolhido, Tatiana. Quando a enfermeira contou que tinha mais uma menina, ela pediu para a enfermeira ler uma lista de nomes, e se cansou quando chegou na letra D", diz Dainara.

"Mas durante toda a nossa infância éramos tratadas como uma entidade, as gêmeas, aí era a mãe das gêmeas, a classe das gêmeas, a casa das gêmeas. Tinha poucos gêmeos nos anos 1960, 1970", afirma. "E ninguém decorava meu nome, então as pessoas falavam ‘essa é a outra Tatiana’".

Tatiana e Dainara são sócias hoje em dia numa produtora chamada "Elástica Filmes", criada em 2006, que tem como missão executar projetos em que possam imprimir o ponto de vista feminino. Mas cada uma delas dirige ou produz seus próprios projetos, elas não são mais uma entidade.

Depois de "Ilha das Flores", e tendo esse sucesso no currículo, Dainara começou fazendo roteiros de documentários. Passou a dirigir documentários curta-metragem na mesma produtora de Porto Alegre que tinha lançado "Ilha das Flores". Estreou como roteirista e diretora de um curta de ficção em 1996, "Um Homem Sério", feito em parceria com Diego de Godoy, que ganhou três prêmios no Festival de Cinema de Gramado.

Mas foi só neste século, mais precisamente em 2018, que Dainara sentiu que havia se aberto uma brecha, como ela chama, no mundo do audiovisual para mulheres em cargos de chefia.

"Com a chegada dos canais de streaming no Brasil, começou a ter uma demanda muito maior por diretoras mulheres. A Prime Video, canal de streaming ligado à Amazon, sempre teve essa exigência. E os outros foram atrás. Tenho certeza de que peguei muitos trabalhos legais nos últimos anos por causa dessa mudança", afirma.

E ela não vê nenhum problema nisso, ao contrário. "A gente tem que aproveitar essas brechas e ir lá ocupar os espaços mesmo. Porque não temos como saber se foi uma porta gigante que se abriu para sempre ou se é uma brecha, que vai durar um período, mas depois se fecha e volta tudo como era antes."

Dainara dirigiu uma das séries brasileiras de ficção mais bem recebidas pelo público e pela crítica dos últimos anos, "Manhãs de Setembro", da Prime Video, com a cantora Liniker no papel principal. Também fez a direção geral de "As Five", da Globoplay, criada por Cao Hamburguer, e de três episódios de "De Volta aos 15", da Netflix.

No ano passado, lançou seu primeiro longa-metragem de ficção, "Mar de Dentro", um projeto que começou a ser concebido quando ela ficou grávida de seu único filho, Bernardo, que já tem 16 anos. "Passei muitos anos em dúvida se queria ou não ter filho. Mas, com 36 anos e a carreira a mil, decidi que queria viver essa experiência, por mais que ela fosse causar um grande impacto na minha vida", conta.

"Minha irmã teve filho antes de mim, como aconteceu com várias outras coisas, ela é muito inquieta, sempre gostou de novidade e me puxava junto, então fiz ginástica olímpica por causa dela, dancei jazz por causa dela, aprendi a fotografar por causa dela. Só cinema que eu comecei antes e puxei ela comigo", diz a cineasta.

"Então eu fiquei sabendo de umas coisas que ninguém costuma contar, que o peito racha quando você amamenta e tal. Mesmo assim, quando meu filho nasceu eu levei um choque. Como nasce tanta gente o tempo inteiro e todo mundo sonega essas informações? Por que a gente não fala nada sobre o que acontece com o corpo da gente, nem na maternidade, nem na menstruação, nem na menopausa?".

O que mais pegou a cineasta foi a solidão que ela sentia, apesar de não ficar sozinha mesmo quase nunca, já que estava cuidando do filho. Dainara é casada há 21 anos com o arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor-titular da USP e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da universidade. Ele tem dois filhos de um primeiro casamento que também moram com Dainara e Bernardo.

Com Mônica Iozzi no papel principal, como uma publicitária bem-sucedida que fica grávida sem planejar, "Mar de Dentro" é um filme tão honesto sobre a maternidade que tem momentos incômodos, quase de terror. "O filme é um mergulho mesmo, tirei do roteiro tudo que poderia tirar o foco da maternidade", conta a cineasta.

O longa estreou na Mostra de Cinema de 2021, no meio da pandemia, e depois nos cinemas em março do ano passado. Foi muito elogiado pela crítica, mas ainda não encontrou o seu público. "Uma das críticas que eu ouvi muito é que a personagem é antipática, o que é puro machismo. Ninguém nunca diz que um personagem masculino é antipático", desabafa a diretora.

"E por que a gente não pode ser antipática? Quem disse que toda mulher tem que ser fofinha?".

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