Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Descrição de chapéu forças armadas

Misoginia e as camadas de um bolo

Misoginia, ou aversão da consciência fascista ao feminino, nunca teve fronteiras

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Às vezes, um motivo é igual a bolo feito em camadas: a parte melhor pode não estar em cima. Isso vem a propósito do veto ao projeto de benefício à higiene íntima de mulheres carentes. Vários países e a maioria dos 50 estados norte-americanos já dispõem de legislação sobre o assunto. Aqui, pelo visto, saiu de pauta: não haveria recursos para a distribuição de absorventes.

Não é argumento a ser levado a sério pela opinião ciente de que verba não é problema, pelo menos quando se trata de atender a interesses paroquiais da pequena política. Daí a exigência de um foco maior sobre as camadas da motivação.

Primeiro cabe registrar que o fato social mais relevante do século passado foi a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho. Um processo irreversível: o protagonismo da mulher nas práticas institucionais é um marco civilizatório. A liderança de uma estadista como Angela Merkel elevou o nível dos paradigmas políticos. Não por acaso, a morte de Marielle Franco repercutiu no mundo como o maior assassinato político deste século.

Restam, porém, barreiras manifestas e ocultas. A condição feminina nas ditaduras messiânicas é um desafio cotidiano à modernidade: arranha-céus e exposições faustosas não encobrem o terror das burcas. E no Ocidente, do fundo dos retrocessos, vem à memória um trecho revelador do Manifesto Futurista de Marinetti (1909), muito admirado por Mussolini: "Queremos glorificar a guerra —a única higiene do mundo—, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias que matam e o desprezo pela mulher".

Misoginia, ou aversão da consciência fascista ao feminino, nunca teve fronteiras. Seis anos antes de Marinetti, o alemão Otto Weininger, autor de "Sexo e Caráter" (1903), tinha feito um paralelismo precursor de violências: "Os judeus, assim como as mulheres, não manifestam nenhuma compreensão a respeito do que é o Estado".

O verbo conjugado nesses anacronismos é o presente do passado, tempo falso das retropias que florescem no esterco da história. As encenações machistas de hoje não são repetições farsescas, mas fantasmas do horror à diferença, indutores de feminicídio. De fato, produtora de vida, pulsional, questionadora do mito patriarcal, a mulher é uma alteridade inassimilável ao uniforme nazi.

Essas camadas profundas do "bolo" motivacional ajudam a explicar por que um tópico como "miséria menstrual", impossível de ser publicamente levantado nas ditaduras movidas por combustível fóssil, contraria o retrógrado imaginário emergente. Por aqui, fantasias misóginas vêm desfilando fora do Carnaval.

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