Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Na Flip, plantas saem da periferia e ocupam o centro da criação literária

Evento, que começa neste sábado (27), se dedica às relações entre imaginação artística e sensibilidade vegetal

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Este é o primeiro fim de semana da Flip 2021, que só termina no domingo que vem, dia 5 de dezembro. Muitas mudanças nesta edição. Uma delas é a existência de um coletivo curatorial (do qual faço parte). Outra novidade: todas as mesas de debates são variações, bem diversas, em torno de um único tema, "Nhe´éry, literatura e plantas".

Salvo engano, é o primeiro grande evento literário internacional a dedicar a totalidade de sua programação para investigar as relações entre a imaginação artística e a sensibilidade (sim, sensibilidade) vegetal.

Encontros e seminários de uma nova corrente conhecida como ecocrítica têm abordado com mais atenção a presença de animais na ficção, poesia e mitologia de diferentes culturas humanas. Exemplo: nos estudos sobre a obra de Guimarães Rosa, as onças ganham muito mais destaque que os buritis.

Essa situação de ineditismo tem vantagem, que pode ser considerada dádiva. Costumo repetir que, desde que começou minha pesquisa nessa curadoria, ganhei novamente minha biblioteca. Cada releitura tem a emoção da primeira vez.

Escrevi um artigo para o livro da Flip 2021, tentando perceber se havia algo de "virada vegetal" nas primeiras movimentações do modernismo brasileiro. Teste: leia o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" ou os diálogos entre Milkau e Lentz, em "Canaã" de Graça Aranha (sim, antes da Semana), depois de ter tido contato com as ideias de Emanuele Coccia ou as pesquisas de Stefano Mancuso (pensadores que falam, respectivamente, nos último e primeiro dias dessa Flip) —todas as palavras ficam novas em "folha".

Outra vantagem nossa: as aventuras modernistas no início do século passado, mesmo com as viagens de Mário de Andrade ou de Elsie Houston e Benjamin Péret, tinham contato indireto, via sobretudo livros de Couto de Magalhães ou Koch-Grünberg, com a imensa complexidade dos pensamentos dos povos indígenas que habitam o território brasileiro.

Hoje, temos acesso a uma produção cada vez maior de intelectuais indígenas, com ensinamentos extremamente "de vanguarda", mesmo sendo muitas vezes "ancestrais", sobre as plantas, com métodos rigorosos para evitar antropocentrismos.

Um guia essencial para o trabalho curatorial foi Carlos Papá, cineasta e liderança (também espiritual) guarani. O tema da Flip é totalmente geolocalizado. É literatura e plantas, mas a partir do "ponto de vida" (como sugere Emanuele Coccia) das plantas das florestas específicas da região de Paraty.

Carlos Papá nos ensinou que, para o povo guarani, a mata atlântica é nhe’éry, "lugar onde as almas se banham". Ou se purificam. Portanto, é território sagrado para as culturas de quem vive ali, ou de quem procura ali, ou desvenda ali, as trilhas para a "terra sem mal".

Ouço Dona Ivone Lara cantando. Eu vim de lá pequenininho. Para entrar na nhe’éry, devemos pisar muito devagarinho. Sem afobação, correria. Com cuidado e respeito. Como em qualquer templo.

Por isso, a Flip começa com ritual guarani. As plantas saem da periferia para ocupar o centro protagonista da criação literária (o baobá de Véronique Tadjo, a figueira de Elif Shafak etc.). Indígenas de Paraty saem da periferia do município para ocupar, com cantos e rezas, a praça da Matriz, onde havia uma aldeia indígena antes da fundação da cidade.

Tudo precisa ser feito com distanciamento, sem multidão, com testes —o que é possível e seguro fazer agora, ainda na pandemia. Mas o que importa é a "eficácia simbólica". E a permissão.

Povos indígenas que enfrentaram e enfrentam os mais de 500 anos de história colonizadora violenta. E hoje são tratados também com outras formas de preconceito: duvida-se de sua "autenticidade", afirma-se que não são verdadeiramente daquele território, que chegaram "depois" (quando na verdade a migração sempre foi comum em suas histórias).

Na praça da Matriz de Paraty, na abertura da Flip, seu recado será dado com voz e palavras, as ferramentas principais da literatura.

Só assim, a mensagem e a missão da Flip 2021, no meio da ameaça da catástrofe climática (carregada de injustiça social), estarão bem "fundamentadas". Afinal, tudo é uma grande ousadia. Contra a exigência de que eventos culturais do "Sul Global" sigam as ordens das instâncias de consagração (premiações, revistas de prestígio, prioridades editoriais etc.) do "Norte" ocidental.

Utopia desesperada: queremos pensar por conta própria, com estilo próprio, contra todos os cada vez maiores problemas explícitos. Mas nada paroquial: estabelecendo sempre contatos diretos com culturas do mundo todo. Alguém cantando: "A dor / Define nossa vida toda / Mas estes passos lançam moda / E dirão ao mundo por onde ir".

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